Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Quebrando muros e construindo arte no ritmo do "baque virado".
Juliana de Souza Izidio do Prado Prado, Adriana Rosmaninho Caldeira de Oliveira

Última alteração: 2018-01-25

Resumo


Esse resumo se refere a um estudo de caso de um sujeito/usuário da rede de atenção psicossocial (RAPS) de Manaus, considerando seu encontro com a arte, em um serviço de saúde mental, e a possibilidade de transformação desse espaço em um lugar onde a vivência artística esteja presente no cotidiano, não só dos sujeitos/usuários e trabalhadores da unidade de saúde, mas também, da comunidade em geral, promovendo a cultura e a construção de uma convivência mais alegre a partir da qual se produza arte.

Falar da história de DLA é para mim, muito mais do que estudar um caso exemplar de um sujeito participante de uma investigação científica. Falar da história de DLA é também reviver minha própria história, sendo que nossos caminhos se entrecruzaram em um espaço de convivência, onde assumíamos papeis sociais diferentes, ele o de usuário e eu o de terapeuta, embora, com um propósito comum: a disponibilidade para o encontro com o outro, e a construção de uma relação de cooperação e compartilhamento, na qual o objetivo principal era o de produzir estratégias de cuidado que fossem efetivas para o alívio do grave sofrimento psíquico apresentado por DLA.

No ano de 2006, foi inaugurado o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade de Manaus, após a intervenção do Ministério Público Estadual, visando a garantia da implantação da reforma psiquiátrica no estado do Amazonas, conforme a preconização da política pública de saúde mental regulamentada em 2001. A dinâmica do serviço refletia o peso de ser o primeiro dispositivo substitutivo ao Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro (CPER), o único hospital de referência para todo o estado nos serviços de pronto-atendimento, ambulatório e internação psiquiátrica. O CAPS propunha uma nova lógica para o cuidado do sofrimento psíquico grave, diferente daquela historicamente praticada e socialmente conhecida. A ideia do fechamento do CPER gerava medo e insegurança, que se faziam presentes no discurso de usuários, familiares, profissionais e da comunidade.

Atuando como psicóloga, na equipe de profissionais do recém-inaugurado CAPS, conheci DLA em maio de 2006, há época com 41 anos. Ele relatava que, desde o ano de 2003, vivia momentos de um sofrimento perturbador ao sentir-se constantemente perseguido por pessoas conhecidas e desconhecidas, além de ver animais peçonhentos, como aranhas, cobras, lagartos, que apareciam nos lugares em que se encontrava, especialmente à noite em sua cama, fato esse que lhe impossibilitava o sono. A ideia de perseguição fazia com que DLA se munisse de um “terçado” que seria utilizado para sua defesa caso se sentisse ameaçado. Ele relatava ainda, ser incomodado por um forte cheiro de sangue humano que frequentemente sentia.

Profunda tristeza era percebida em DLA ao falar sobre seu trabalho. O desempenho profissional, como segurança de carros-fortes, foi interrompido após passar por um momento de intensificação do sofrimento, no ambiente de trabalho, quando a realidade parecia não mais fazer sentido, a não ser pela certeza de que naquele momento seria morto por um de seus colegas, certeza essa, que o fez ameaçar a todos com a própria arma de fogo com a qual trabalhava. DLA foi levado ao pronto atendimento psiquiátrico do CPER e a partir de então, não mais retornou ao seu trabalho.

A identidade profissional era uma referência importante em sua vida. Casado há 15 anos e pai de um casal de filhos pré-adolescentes, DLA era o provedor de sua família. Dizia sentir vergonha de contar a esposa sobre o que se passava com ele, e por esse motivo, no dia em que decidiu por pedir ajuda, foi ao CAPS sozinho.

O desafio para a equipe, na qual me incluía, foi o de garantir a ele o cuidado em um espaço aberto, onde era livre para ir e vir, e autônomo para decidir ficar ou não. DLA optou por ficar e foi o primeiro sujeito/usuário ao qual se lançou mão de uma estratégia de enfrentamento à crise, oferecida pelo CAPS de tipo III, que é o acolhimento em regime de 24 horas, como uma proposta de alternativa à internação no hospital psiquiátrico. DLA permaneceu em acolhimento por quatro dias, recebendo cuidados intensivos da equipe.

Com o passar do tempo os projetos terapêuticos construídos e reconstruídos buscaram o resgate de sua identidade artística. Em nossa convivência, sempre demonstrou talento para a música. Nas oficinas do CAPS, redescobriu o prazer em tocar violão e cantar, passou a apresentar-se publicamente com um coletivo de frequentadores do serviço, e fez parte de um grupo musical chamado Loucozencena, um quinteto de voz e violão, que realizava apresentações artísticas em Manaus, chegando a representar o Amazonas em um evento de saúde mental na cidade de Curitiba em 2013. Foi a primeira vez que DLA viajou de avião.

Entendendo a importância de transformar o espaço do CAPS em lugar também de produção de arte, em 2011, a partir da iniciativa de alguns profissionais da equipe, que tinham proximidade com a cultura popular do Maracatu, foi criada uma oficina de percussão, com o objetivo de proporcionar aos participantes a experiência cultural e artística relacionada ao ritmo autêntico do Maracatu. Essa oficina se expandiu após uma parceria com o grupo local chamado Eco da Sapopema e com o financiamento do Ministério da Saúde, como incentivo para projetos de arte e cultura nos serviços de saúde.

Fundou-se então o grupo Maracatu Quebra Muro, aberto a participação da comunidade independentemente de idade, escolaridade, profissão, condição de saúde, religião, sexo ou raça, com o objetivo da convivência comunitária para a experimentação da arte e da cultura popular. O “baque virado”, produzido por instrumentos como a alfaia, o agbê, o apito e a caixa, é o estilo que identifica o ritmo e a cadência da percussão.

O grupo Quebra Muro, para DLA, representa hoje um lugar de reconstrução de identidade. Nesse espaço ele se descobre como compositor, escrevendo letras para as músicas, ou toadas como são chamadas nesse estilo musical. As letras expressam suas vivências e sentimentos, enquanto DLA parece preencher de sentido algumas lacunas presentes em sua história de vida, como aquela deixada pela abrupta interrupção de seu papel social de trabalhador e provedor da família.

Além da composição, sua participação no grupo se dá também como cantor e percussionista. A tarefa de produzir arte, assim como os convites para apresentações em eventos locais e até fora do estado, legitimam seu lugar de artista e sua capacidade de autonomia, vista como a liberdade de ser quem se é, de fazer escolhas e viver a vida em suas mais diferentes formas. A possibilidade de sua inserção em vários espaços, levando alegria, descontração e emoção para as pessoas, aumentou seu poder de trocas sociais. A arte se tornou para DLA um caminho de ressignificação do sofrimento e de promoção de vida.

A inserção da arte nas práticas do CAPS se mostra, para além de um recurso terapêutico de transformação da experiência de sofrimento, como um instrumento de promoção da cultura, da convivência entre as pessoas e da construção de um espaço mais alegre, onde tocar, dançar, cantar e brincar possam estar presentes no cotidiano de todos.


Palavras-chave


Saúde mental; Arte; Maracatu.