Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Título: Acompanhante Terapêutica – Encantos e Desencantos de ser AT de uma Mulher no cárcere - Relato de Experiência de AT do Projeto Redes – Mulher FIOCRUZ-SENAD
Patrícia Ludmila Barbosa de Melo

Última alteração: 2017-12-26

Resumo


Apresentação: De acordo com o site (http://ittc.org.br/wp-content/uploads/2017/03/relatorio_final_online.pdf) a população carcerária no Brasil tem crescido ao longo dos anos, estando o Brasil colocado como o quarto país com maior população prisional. As razões são prisões baseada no flagrante, uso excessivo da prisão provisória e baixo acesso à defesa técnica de qualidade. Quando se trata de mulheres a situação piora. Mulheres constituem a população cuja taxa de crescimento foi mais acelerada nos últimos anos no sistema prisional. Roraima não difere do restante do Brasil e o aumento de mulheres na cadeia, prioritariamente jovens, pobres e negras, tem sido marcante. É justamente neste cenário que se insere o caso de Acompanhamento Terapêutico – AT que será abordado no presente trabalho.

Desenvolvimento do trabalho: Fazer o AT de pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas não é algo simples, porém quando este acompanhamento é dirigido a uma mulher do sistema prisional o desafio toma uma dimensão que não se tem noção quando não se está inserido. Este relato traz a experiência de uma articuladora social do Projeto Redes - Mulher da FIOCRUZ/SENAD na prática clínica de acompanhamento terapêutico com uma mulher de 36 anos, cearense, criada no Norte, mãe de sete filhos, avó, que apresenta relação problemática com uso de drogas, ideação suicida, usuária do CAPS ad III de Boa Vista e encontra-se há cinco meses no sistema carcerário de Roraima. Ré primária, preventivada, detida ao tentar levar cocaína para um “companheiro”, que havia conhecido na prisão, durante um programa (profissional do sexo). Com todo o histórico da usuária (chamarei de Riso), que tem laudo atestando problemas de saúde mental há vários anos decorrentes de fatores diversos, usuária da Rede de Atenção Psicossocial e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) por incapacidade para o trabalho há vários anos, tentativas sucessivas de suicídio na prisão, até o momento permanece na cadeia feminina, com vários pedidos de habeas corpus negado. O caso foi recorrido ao Supremo Tribunal Federal. Ao longo de quatro meses, vigência do Projeto Redes da FIOCRUZ/SENAD no município de Boa Vista, sob a coordenação e supervisão de uma equipe técnica (interlocutor, coordenadora e supervisoras) exerci a função de Acompanhante Terapêutica (AT) de Riso e, por conseguinte, de seus familiares. Como Riso chegou até mim? Quem é ela? Como “chegar junto” e “emprestar o corpo” a alguém que não se pode encontrar na hora que se quer? Como ser AT de alguém separada de nós por um muro físico e duro associado a um muro que não se enxerga, mas se sente? Como articular a rede intersetorial para que esta percebesse Riso ainda como cidadã, apesar de estar no sistema carcerário? Como fazer a voz de Riso ser ouvida por quem não acredita que a justiça comete injustiças? Como juntar a rede existente para que elas comecem a se enxergar como corresponsáveis pelo cuidado de Riso? Quais os encantos e desencantos dessa prática? Estes foram alguns dos desafios e questionamentos iniciais que fiz. Apesar do cenário e das forças que demandavam que eu desistisse, decidi seguir acreditando que seria sim, possível fazer o AT nessas condições, pois a primeira coisa que esse caso precisava era de alguém que o visse e que a rede enxergasse Riso, a ouvisse e principalmente percebesse a série de equívocos e injustiças cometidas desde sua prisão. Mergulhei e me permiti ser, estar, sentir, partilhar, escutar, olhar e caminhar ao lado de Riso, mesmo com a barreira dos altos muros da prisão.

Resultados e/ou impactos: Apesar dos anos de experiência como trabalhadora da Saúde Mental, tanto na assistência, como em processos formativos, adentrar o mundo e vivenciar a prática em ato do Acompanhamento Terapêutico de uma mulher em conflito com a lei, vivendo na cadeia feminina de Boa Vista foi uma experiência que me marcou de tal maneira, que não consigo mais imaginar um serviço de saúde mental sem a possibilidade de ofertar essa estratégia de cuidado. Não podemos deixar de enxergar o cenário preocupante e de injustiça em que as mulheres estão expostas nas prisões no Brasil. Me permitir ser afetada por Riso sem as amarras do meu saber prévio fez sentido para mim e foi uma das estratégias que usei a cada encontro com ela, com os familiares e com os dispositivos para articular o seu cuidado em rede e principalmente para sua saída da prisão. Fomos “pintando as nossas telas juntas” e de mansinho, experimentando e admirando a forma que cada gota de tinta assumia ao cair no tecido e a mudança ao se misturar com outros tons. Às vezes, as cores e formas não tomavam caminhos interessantes. Chegar devagar, se permitindo ao novo, ao inesperado, aos desafios de olhar nos olhos de alguém, que nunca havia visto e enxergar para além do que lhe é apresentado foi uma das bases da minha prática e por mais que planejamentos fossem traçados, a cada encontro era algo novo, que me levava a reaprender para agir, evidenciando que a Educação Permanente se dá no encontro com o outro, como diz o mestre Merhy. Muitos acúmulos foram incorporados à minha bagagem de afecções e ferramentas, impactando no meu pensar e no meu agir.

Considerações finais: Aprendi e sigo aprendendo e certamente deixei marcas em Riso, em seus familiares e nos trabalhadores dos serviços ativados / articulados para compor a rede de cuidado dela. Porém é necessário ampliar o debate acerca dessa questão e mudar as práticas excludentes. Parece redundante, mas mulheres que estão no sistema prisional necessitam de saúde, assistência social, justiça, educação, porque continuam na condição de cidadãs, mesmo que essa não seja a percepção geral. Importante ressaltar que o AT de Riso foi sempre conversado e debatido com os serviços / equipamentos da rede, pois a ideia é que haja a corresponsabilização do cuidado e que os itinerários terapêuticos sejam assumidos por todos, independentemente da existência do Projeto REDES no território. Muito ainda precisa ser percorrido para diminuir a invibilização das mulheres em conflito com a Lei. Ao torná-la invisível, os problemas que demandam soluções e arranjos mais complexos, “desaparecem” também. Precisamos exigir a garantia de direitos às mulheres, pois ainda há milhares de brasileiras que lotam as prisões, à espera de julgamento, enfrentando violação de direitos, enquanto poderiam estar em prisões domiciliares (já previstas no Código Penal Brasileiro) perto de filhos e demais familiares.


Palavras-chave


Acompanhante Terapêutico. Sistema carcerário. Mulher. Drogas. Rede Intersetorial.