Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Coletivo ceno.poético Vento dos Avoados: teatro documentário e performance na atenção psicossocial
Geórgia Sibele Nogueira da Silva, Ana Karenina de Melo Arraes Amorim, Breno Lincoln Diniz

Última alteração: 2018-01-25

Resumo


A experiência relatada aqui trata do desenvolvimento de estratégias de aproximação e promoção das expressões culturais que integram a diversidade cultural e que visam promover a reinserção social e cultural de pessoas em sofrimento psíquico fruto de vulnerabilidades, tais como transtornos mentais e ou da situação de rua. Contribuindo com a Reforma Psiquiátrica,  por meio da criação de novas formas de comunicação, expressão e participação social, compreendemos a arte enquanto importante intercessora na produção de saúde e vida desses sujeitos em vulnerabilidade. Nesse sentido, propusemos uma ação de extensão intitulada “Invisíveis e Loucos pela cidade” que, no ano de 2016 realizou oficinas de comunicação e teatro documentário junto a esse público.

Na perspectiva de uma pesquisa intervenção foram realizadas oficinas de teatro documentário e criado o Coletivo “Vento dos Avoados” que teve como principal objetivo promover a inserção sociocultural dos integrantes e desenvolver novas tecnologias de cuidado no âmbito psicossocial da população atendida. As oficinas aconteceram em uma Casa de Cultura no centro da cidade de Natal, local que fomentava  a participação social e  incentivava a organização política dessas pessoas no cenário sociopolítico da cidade com vistas a ocupar e produzir novos espaços sociais para a loucura e a diversidade.

Como estética artística nos orientamos pelo Teatro Documentário que tem como fundamento trabalhar com fatos reais da vida dos “atores”, usando como pesquisa depoimentos, testemunhos, documentos pessoais, fotos, vídeos, além do outros operadores estéticos para compor a pesquisa e criação das performances cênicas. É uma estética das Artes Cênicas que chegou ao Brasil nos 1960 e, neste período, era permeada de motivações político-sociais configurando-se como um tipo de teatro político que buscava denunciar o cenário sóciopolítico daquela época. No Teatro Documentário, o processo de pesquisa e criação é feito a partir de dados extraídos da realidade, apresentados assumidamente desta maneira. As pesquisas documentais e biográficas proporcionam uma experiência autoral para cada integrante colocando-os na composição dramatúrgica, na perspectiva de criação das próprias perfomances. Geralmente, explora a dimensão confessional via produção de depoimentos em seu processo, visando transformar o espectador em testemunha. Tem o foco político de enunciar e fazer ver as violações de direitos e privações de toda ordem presentes nas vidas das pessoas que participam do projeto, promovendo implicação coletiva em relação as mesmas, tanto nos participantes, quanto nos expectadores.

A partir da biografia das pessoas que estão em cena, o performer se torna figura central nos discursos enunciados. A percepção do público que a história dita em cena é real, vivida de fato por aquele que a relata, implica na necessidade de uma presença física e imediata do sujeito dos acontecimentos. Muito diferente de outros tipo de encenação e linguagem artística em que o ator representa algo que fora escrito por outro. É essa presença que possui a propriedade de conferir uma denotação de realidade ao evento teatral, e por meio disso, reivindica que expresse também algo verdadeiro, uma verdade não só interna, mas também objetiva. Assim, procura-se a criação teatral na imanência da vida, naquilo que ela oferece de potência e de captura em relação a realidade social mais ampla vivida por todos e cada um.

O Teatro Documentário leva os atores a expor aberta e publicamente, desejos, sonhos, medos e histórias pessoais, constróem, durante o processo, um tipo de “museu” à céu aberto com seus relatos, objetos escolhidos, intrelocutores, textos e mais inúmeros intercessores deste processo de remontagem de si mesmo ao outro. O sutil limite entre arte e vida é desafiado e desconstruído. Nas performances cênicas buscamos não explorar depoimentos que tragam exclusivamente o conteúdo das vivências sobre o sofrimento psíquico, mas sim buscamos incitar memórias que os aproximem do universo cotidiano,  pessoas que se encontram, amam, perdem e sonham. Buscamos conteúdos que os redimensionem em sua própria história – aquela que muitas vezes é esquecida por serem lembrados somente como “loucos”, “usuários de serviços de saúde mental”, “pessoas em situação de rua”, “moradores de rua”, “vagabundos”, “perigosos” e em todas as figuras estigmatizantes que  reduzem as suas histórias a simbolos estigmatizadores.

Com a “re.invenção” destes relatos e testemunhos acreditamos na possibilidade de uma aproximação estética e ética da vida, a qual pode acarretar uma outra forma de estar nela. Ao recriar as memórias dentro de uma linguagem cênica perfomática, os integrantes contam com a possibilidade de transformação das mesmas, desenvolvendo uma certa “estética de existência”, no sentido proposto por Foucault (1984) ao trabalho de produção de subjetividades com base nas práticas de “Cuidado de si”.

O produto cênico da Coletivo já foi apresentado no II Fórum de Direitos Humanos da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME), realizado em João Pessoa em 2015, bem como na UFRN na disciplina Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica no semestre de 2015. Foi exibido também no Encontro Regional Nordeste da Rede Unida em 2015 com a Cena intitulada “Dois Homens: o encontro” encenada por um estudante do curso de psicologia e um ator usuário da rede de saúde mental, ambos integrantes do Coletivo. A cena se passa quando esses dois atores/poetas transformam suas biografias numa cena poética: João Maria Ferreira relata sua vida desde a infância sendo negro, pobre, deficiente traçando e compartilhando sua trajetória que desemboca nos manicômios da cidade de Natal. Nessa trajetória biográfica, João Maria se encontra com Breno, um estudante de psicologia vindo do interior do Rio Grande do Norte, uma pessoa desencontrada em Natal, um poeta, cantor e ator que se diz aprisionado numa cidade grande e duvidoso de sua futura profissão como psicólogo. Esses dois homens encontram-se nessa cena transformando e recriando esses relatos sensíveis num momento epifânico. Breno canta a vida de João Maria, o qual fura o labirinto manicomial de sua existência quando relembra de um grande amor ao remontar sua história. Assim, sua existência se enche de outra memória e seu presente se recria. Os relatos que sempre mencionavam as violências das internações psiquiátricas ao longo da vida dão lugar para outras memórias nas narrativas, é possível rememorar um amor, e torna-se possível sonhar com a entrada na Universidade, sua história se torna uma “performance” e pode ser re.sonhada com o público ao ser compartilhada. O passado torna-se experiência compartilhada. Breno se vê como alguém que pode ser poeta e estudande de psicologia e vai compreendendo seu lugar de pertencimento no curso e em sua história na cidade. São narrativas pessoais que se tornam memória coletiva, ou seja, tornam-se cultura.

O Teatro Documentário revelou-se como um importante dispositivo na produção de outras formas de Cuidado em saúde, produção de subjetividades, comunicação, epansão da afetividade, autonomia e inserção da cidade. Por meio do compartilhamento comunitário das histórias de vidas e possível ressignificação das mesmas nos exercícios cênicos, percebeu-se melhoras efetivas na capacidade de expressão, aumento do senso de pertecimento aos grupo, inserção em outros territórios da cidade e protagonismo em movimentos sociais pertencentes às lutas por direitos e cidadania das populações atendidas.

O presente relato de experiência nos leva à reflexão sobre as possíveis conexões e contribuições do Teatro Documentário para o campo da atenção e reabilitação  psicossocial para pessoas em situações de vulnerabilidades sanitárias e socioafetivas.

 


Palavras-chave


saúde mental; teatro documentário; cultura e produção de saúde