Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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“PRECISAMOS FALAR SOBRE OS TERREIROS”: O CUIDADO EM SAÚDE NAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS
Matheus Barbosa, Antônio Vladimir Félix da Silva, Ana Kalliny de Sousa Severo

Última alteração: 2018-01-11

Resumo


Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), houve uma institucionalização de alguns ideais defendidos pelo movimento da reforma sanitária brasileira, tais como: universalidade na cobertura, integralidade na atenção, participação comunitária e equidade. Esse último princípio é caracterizado pelos seguintes aspectos: definição de regras mais justas para a convivência em sociedade; alcance do bem-estar social para todos os cidadãos e elaboração de políticas públicas destinadas a grupos populacionais historicamente privados de acesso à saúde, assistência, educação, moradia, transporte, saneamento básico e infraestrutura. Outro marco legal que avançou nas conquistas do movimento sanitário, em especial nas questões concernentes à participação popular na saúde, foi a Política de Humanização da Atenção e da Gestão (PNH), criada com o intuito de incluir os diferentes sujeitos e coletivos nos processos de planejamento, implementação e avaliação dos processos de saúde e de formação dos profissionais da área, cada um contribuindo a partir das suas singularidades na promoção de uma saúde que rompesse com os padrões biomédicos e levasse em consideração seus aspectos sociais, econômicos, históricos, políticos e culturais. Nesse trabalho, partimos da tese de que as práticas de cuidado não são exclusivas da categoria médica ou dos demais profissionais da saúde, em vez disso, acreditamos que outros atores sociais também são promotores de cuidado, sejam eles detentores de um saber especializado ou não, como as rezadeiras, os pajés ou os adeptos de religiões afro-brasileiras. No caso desses últimos atores, historicamente os espaços de sacralidade que eles são filiados têm ofertado algumas práticas de cuidado a quem a ele se dirige em busca de auxílio para suas queixas físicas, mentais ou espirituais. Assim, o presente estudo tem como objetivo principal mapear na literatura científica brasileira como são ofertados os processos de cuidado em saúde promovidos pelas religiões afro-brasileiras direcionados aos seus praticantes, consulentes e à comunidade de forma geral. Trata-se de uma revisão sistemática realizada entre outubro a dezembro de 2017. Em primeiro lugar, realizamos uma busca direta na base de dados SciELO, utilizando os seguintes conjuntos de palavras-chave: religião afro-brasileira/cuidado; religiões afro-brasileiras/cuidado; afro-brasileira/cuidado; afro-brasileiras/cuidado; religião de matriz africana/cuidado; umbanda/cuidado; candomblé/cuidado; religião de matriz africana; religiões afro-brasileiras; umbanda; e candomblé. Esses descritores também foram traduzidos para o espanhol e para o inglês. É preciso ressaltarmos que cada conjunto de palavras-chave correspondeu a uma busca distinta. Posteriormente, foi elencada uma série de critérios de elegibilidade como definidores da análise das pesquisas, os quais foram: veículo de divulgação (periódicos indexados), período de publicação (até o ano de 2017); idioma (português, inglês ou espanhol); modalidade de produção (revisões de literatura, estudos empíricos, relatos de experiência e/ou estudos de casos) e conteúdo discorrido (em consonância com objetivo proposto). Essa busca ocorreu a partir de uma análise minuciosa dos resumos das pesquisas encontradas, sendo que os selecionados foram lidos na íntegra. Esses procedimentos foram realizados por dois pesquisadores, primeiramente de maneira isolada, havendo em seguida uma confrontação dos dados de cada um e, posteriormente, um consenso entre ambos sobre os materiais a serem escolhidos para análise. A busca realizada identificou a presença de 131 artigos, cujos resumos foram lidos detalhadamente. Após eliminação das pesquisas semelhantes e de uma análise crítica com base nos critérios de elegibilidade restaram apenas 8 estudos, sendo que após a leitura completa dos mesmos, outro acabou sendo excluído, de forma que, no total, analisamos 7 investigações. Os objetivos desses artigos estavam assim distribuídos: estudar fenômenos concernentes às interações entre religiões afro-brasileiras e serviços de saúde (n = 4); investigar o engajamento de terreiros em aspectos relacionados ao HIV/Aids (n = 1); explanar as práticas de cuidado das religiões de terreiros (n =1); e estudar as práticas de cuidado das religiões afro-brasileiras juntamente com as que são oferecidas pelas igreja católica e pentecostal, comparando-as com as oferecidas no âmbito da saúde mental (n = 1). Com relação ao tipo de estudo, esses se classificavam como: etnográficos (n= 3); triangulação de métodos (n =1); orientação psicanalítica (n =1); levantamento (n =1); e não esclarecia ao leitor (n =1). Nessas investigações, a coleta de dados ocorreu por meio da utilização dos seguintes instrumentos: entrevistas livres com lideranças religiosas (n = 4); observação participante em terreiros (n = 3); conversas informais (n = 2); não explicitava os instrumentos (n =2); entrevista com os adeptos (n =2); observações sistemáticas (n =1); entrevistas de diferentes modalidades (informante-chave, em profundidade, história de vida e história oral) (n =1); materiais pessoais dos frequentadores e dirigentes do terreiro (n =1); observação participantes das atividades desenvolvidas pela Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco (n =1); indicadores de saúde (n = 1); política para saúde da população negra (n = 1) e criação de um posto de vacinação num terreiro (n =1). Por fim, a partir dos resultados das pesquisas analisadas, construímos duas categorias analíticas: (i) especificidades das religiões afro-brasileiras e (ii) atenção à saúde dos povos de terreiros. Na primeira categoria, foi possível identificar alguns aspectos, a saber: os terreiros comportam espaços específicos para rituais e para cultos aos orixás, além de atuarem como rede de apoio à população local, oferecendo aconselhamentos, consultas e tratamentos para muitos males, desde amor até falência financeira; seus espaços de sacralidade geralmente se localizam em residências de pessoas de baixa renda, que abrigam, muitas vezes, famílias de santo e de sangue; os seus adeptos e consulentes frequentam esses espaços em decorrência de aspectos como busca espiritual, tradição familiar, dificuldade financeira e problemas amorosos; e compreendem as doenças como tendo várias origens, sejam elas de ordem física, mental, de outras vidas, causada por outras pessoas, “por encosto” ou “obsessão”. Na segunda categoria, também foi possível identificar alguns aspectos, a saber: os cuidados oferecidos pelos terreiros variam de acordo com as razões que desencadearam a aflição, havendo uma alusão constante à diferença entre causas espirituais e causas materiais ou físicas, de modo que quando os sintomas do enfermo apontam para doenças reconhecidas como originalmente orgânicas, o suporte oferecido consiste em aconselhar e orientar uma melhor alternativa para cura, diferentemente de quando a enfermidade é de ordem psicológica ou espiritual, quando há o uso de plantas e ervas em chás e banhos e a consulta aos orixás; na maioria das vezes, as principais queixas dos consulentes são problemas como dor de cabeça, desmaio, depressão, problemas de visão, taquicardia, hipertensão, doença desconhecida pelos médicos, amnésia, doenças de pele, febre reumática, convulsões, alcoolismo, insônia, doença dos nervos e doenças da barriga; e a existência de experiências exitosas de interações entre serviços de saúde e religiões afro-brasileiras, como a criação de um posto de vacinação em um terreiro de candomblé ou as atividades desenvolvidas pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RENAFRO-SAÚDE). Nesses casos, essas possibilidades de dialogias serviços-terreiros se encontram constantemente prejudicadas em virtude de discussões econômicas, políticas, partidárias e religiosas que quase sempre servem apenas para negar o acompanhamento, suporte e atenção aos povos de terreiros por parte dos serviços de saúde. Desse modo, a partir desse trabalho, pudemos perceber a importância das religiões afro-brasileiras e de suas simbologias, crenças e práticas de cuidado, sendo, portanto, cada vez mais necessário que os equipamentos “oficiais” de saúde interajam com estes espaços, seja reconhecendo suas práticas de cura ou os convidando a planejar, implementar e avaliar políticas públicas que lhes são específicas.


Palavras-chave


cuidado; saúde; religiões afro-brasileiras