Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Pesquisa, políticas de escrita e processos de saúde e subjetivação como enfrentamento do presente
Priscila de Andrade Lima

Última alteração: 2018-01-25

Resumo


De onde ou como se inicia a escrita de uma tese acadêmica? De onde ou como se inicia uma batalha, uma estética, uma defesa de mundo, uma política de escrita? Todos os meus cadernos começam com uma folha em branco, talvez para lembrar que a afirmação do presente tem antes um infinito desconhecido. Reluto na vontade, temo que essa escolha inicial fique enfadonha para o olhar acadêmico. Reitero a mim mesma que também sou o olhar acadêmico. Camarada, onde leres a primeira pessoa, compreenda a dimensão nós, a trama infinita do mundo, o que se repete nas diferenças, o emaranhado das linhas, a transversalidade. A vida não é algo pessoal. Fico incerta até entre o paradoxo e o agonístico. Somos irrepetíveis em nós de singularidades e coletividades. Daqui, com os teclados do notebook, ouço a máquina de costura da vizinha. Máquinas de costura me lembram infância, a criação e feitura da pele, a construção de si como obra de arte. Penso na costura como uma pista. Tomo um café. Sim, a escrita se faz como uma costura de pontos, vírgulas, palavras, ideias. Cada palavra pode ser tudo e nada. Toda palavra escolhida é vital, é colhida, é colheita, é a agricultura do corpopesquisador. No entre, no interstício da coragem-desejo que me move, assumo o risco e exposição – te convido a toma-lo junto, camarada - te conto uma história costurada como bricolagem micro e macropolítica, e nela vamos tecendo as pistas das complexificações dessa tese-jornada. Não é a história de um pequeno eu, é um inventário possível do trajeto das forças, de como elas chegam até aqui construindo e desconstruindo sentidos, é convocar ancestrais e documentar a luta na tentativa incessante de compreender e transformar o presente, jogando com as palavras e as ideias de escrever, viver, se ver – a escrita a partir do corpo que vive. Na segunda metade da década de 1970 surgiram no Brasil os chamados Novos Movimentos Sociais, os quais atuam ainda hoje como conectores dos saberes locais e saberes especializados e identificam novos modos de opressão para além da produção – é o alcance da geografia das subjetividades. Estes movimentos caracterizam-se como grupos estudantis, grupos de mulheres, associações de bairro, grupos de lutas por direitos sociais e democracia, entre outros. Essa maneira associa prática política e vida cotidiana, sustentando uma nova subjetivação e relação entre território/coletividades e gestão de políticas públicas sociais. Minha formação em Psicologia engajou-me em trabalhos, estudos e lutas nos quais tenho me comprometido em forjar forças e potências de articulação transdisciplinares, realizando uma psicologia que ultrapassa consultórios e settings, implicada com políticas públicas e mudanças sociais. Tomada por uma geografia das subjetivações, minha proposição na pesquisa de doutorado era pensar a produção de saúde da população a partir de espaços, atitudes e conceitos ampliados. O equipamento de saúde torna-se mais um meio, composição ativa e não única, dos indicativos da qualidade de existência. Neste sentido, ocupar as ruas e nos apropriarmos de espaços diversos da cidade e do campo, conviver-intervir em ruas, praças, equipamentos públicos de cultura, associações de moradores, universidades encarnando nas vidas em acontecimento, alcançando movimentos autônomos coletivos que se fazem como dispositivos de produção em saúde e subjetividade. Produzir saúde pública a partir de espaços ampliados e das relações e não apenas diagnósticos é também produzir subjetividades, é construir a vida como obra de arte, é fazer arte ao mesmo tempo em que se faz a vida-de-si, implicar-nos histórica e coletivamente aos ambientes, às propostas de cuidado e conhecimento, às dimensões democráticas de organização social e cultural. A experiência de migração dentro de meu país para a realização do doutorado veio acompanhada dos acontecimentos de corrupção e desmantelamento de políticas públicas e do movimento de ocupação da universidade em 2016 frente à Proposta de Emenda Constitucional 241 que propunha congelar as despesas do Governo Federal pelos próximos 20 anos, de acordo com cifras corrigidas pela inflação, freando assim possíveis avanços e investimentos tanto na saúde quanto educação. Indignados com a proposta governista e em retirada dos modos habituais da sala de aula, os estudantes de graduação ocuparam os espaços da faculdade, convocaram a pós-graduação para a luta e mantiveram a função pública de formação – debates minoritários e ações culturais. As salas de aula foram barradas por eles e colchões, cobertas, depósito de alimentos doados, cartazes por todos os lados eram as barricadas desses jovens. E foi a partir desse acontecimento e participação que a proposta de tese se fez uma tese-jornada em que o método é a própria experiência de escrever e acompanhar a política dos encontros que se fazem na universidade. A partir de uma perspectiva transdisciplinar podemos desestabilizar os campos das disciplinas para pensarmos e experienciarmos uma ética de luta que borre as fronteiras geográficas e de percepção, assim como perturbar o cansaço de olhares cristalizados, colocando em evidência a potência criativa e vital de nossas complexidades. Isto porque proponho uma obra aberta, artisticamente ensaística e que desafia a universidade à compreensão das questões que pedem passagem no presente, das exigências em saúde e do posicionamento crítico e afirmativo quanto às subjetivações capitalísticas que podem ser produzidas na exigência burocrática em encontro com as formações. As questões práticas da intersorialidade das políticas e a interface entre arte, saúde e cultura como corpo que chegou, deu espaço e abertura para a escuta e alargamento do presente: militância e trabalho em saúde e subjetividade a partir de um campo que se-faz-em-sendo: a própria escrita enquanto defesa de mundo, um mundo (im)possível, o cuidado de si no trabalho acadêmico, criar-se a si mesmo e o próprio processo de escrita como obra de arte. Como acompanhar de modo ético e não ingênuo o que está nos interstícios de um campo? Como construir uma alegria de corpo em tempos violentos? Como criar uma política de escrita que se torne uma arma de criação, resistência e produção de comum diante os acontecimentos do presente? Pode a escrita tornar-se uma experiência ética-estética-política de saúde? Quais processos de subjetivação estamos produzindo na universidade a partir de nossas políticas de escrita? Para que e para quem estamos escrevendo? Fico aqui quieta vasculhando-fabricando palavras e pensamentos. Para quem escrevo? Com quem escrevo? Habitar a solidão com alegria em situações conjunturais de crise pode ter grande utilidade pública. Não se perder de si e nem da alteridade é faísca e lastro para uma pesquisa-escrita que tenta não objetificar um problema ou seres, e tampouco debruçar-se sobre uma narrativa egóica narcísica. É a afirmação que construo enquanto autora e autoridade neste percurso-em-sendo. Não falo da autoridade enquanto fábrica de obras especializadas, mas de protagonizar a história que escolhi contar. Protagonística. Estar-em-sendo na agonística de estar. Para tanto, os companheiros de sensibilidade, os amigos de luta, as linhas quentes que aproximam os seres, as diferenças cotidianas que nos interpelam, os encontros revoltosos-amorosos são uma força motriz para a máquina de guerra do pensamento e da escrita. Este é um trabalho em início e em curso, propondo conexão e dialogicidades quanto aos corpos e pesquisas que produzimos para o enfrentamento do presente. Toda produção de conhecimentos está imbuída de uma postura que nos implica politicamente.

 


Palavras-chave


políticas de escrita; saúde; artes de si