Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Sobre os desafios de produzir cuidado às mulheres em situação de vulnerabilidade social
Paula Monteiro de Siqueira, Laura Camargo Macruz Feuerwerker, Mariana Leite Hernandez, Lumena Almeida Castro Furtado, Harete Vianna Moreno, Heloisa Elaine Santos

Última alteração: 2018-01-21

Resumo


Este relato foi produzido a partir do processamento coletivo da experiência de trabalhadores pesquisadores no contexto da rua, vivenciadas em iniciativas tais como o Programa de Braços Abertos (DBA), Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), Consultório na Rua (CnaRua). Dentre muitos casos problematizados estão os de mulheres, a quem, por viverem uma situação de vulnerabilidade e em nome de uma suposta “proteção” à criança, têm sido negado o direito de viver sua maternidade. São mães órfãs de seus próprios filhos, sequestrados, muitas vezes antes mesmo da primeira mamada, em maternidades de várias cidades do país.

A condição da mulher, negra, em situação de rua ou de grande vulnerabilidade social, associada ao uso de álcool e/ou outras drogas, tem sido um marcador para a ação violenta e conjunta de instituições como as da Saúde, da Assistência Social e Judiciário.

O texto busca refletir sobre a relação entre o ato de cuidar e a produção de tutela e autonomia, central nesta situação em que, tanto o sequestro de bebês como a defesa do direito das mães de terem seus filhos podem ser exercidos no âmbito do cuidar em saúde. Nesse caso, a tutela outorgada ou conquistada pode estar relacionada a um agir castrador ou libertador, e o que está no cerne desse debate: qual é a centralidade do ato de cuidar. Este artigo se propõe a apresentar esta situação, refletir sobre ela, para ajudar a romper o silêncio, amplificar a denúncia e avançar na disputa por um cuidado que ajude a produzir mais vida.

São mães órfãs de seus próprios filhos, sequestrados, muitas vezes antes mesmo da primeira mamada, nas maternidades de várias cidades do país. Um cordão umbilical arrancado com violência, interrompendo compulsoriamente esta relação. A relação mãe-filho(a) é reduzida à mãe-depositária, com quem o bebê só pode permanecer até o nascimento e, tão logo retirado de seu útero, entregue a equipamentos de “proteção”.

Difícil refletir sobre esta situação sem referir a brutal situação de violência que submete a mulher e em particular a mulher em situação de rua. Ser mulher na rua é um desafio ainda mais intenso que para o homem. Muitas nos relatam não poder ficar sem um homem, pois sozinhas ficam mais vulneráveis às agressões masculinas. A escolha (ou aceitação) do parceiro pode ser uma decisão por segurança, antes de uma decisão afetiva.

Em muitas situações, a ação conjunta da saúde, da assistência social, dos Conselhos Tutelares, tem o respaldo explícito do poder Judiciário. Entretanto, ações como as registradas neste texto não se restringem às maternidades de municípios em que há estas recomendações formais do Ministério Público ou do Judiciário, são práticas recorrentes em muitos outros lugares.

Alguns buscam revestir tais ações violentas de alguma legitimidade institucional em nome da proteção da criança, alegando prerrogativas a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA, que em muitas situações foi e é fundamental para defender e garantir o direito das crianças e viabilizar seus direitos sociais, neste caso, tem sido apropriado por forças que o usam como dispositivo para negar o direito de mulheres à vida que elas poderiam produzir/construir como mães de seus novos filhos. Dessa forma, percebemos que, dependendo da força que se apropria de um problema ou de um conceito - no caso o ECA -, são diferentes os valores produzidos.  Direitos de uns, supostamente contra direitos de outros, todos sem voz ativa, assujeitados.

Em diversas oportunidades, diretrizes e fluxos visando a atenção integral à saúde das mulheres e das adolescentes em situação de rua e/ou usuárias de crack/outras drogas e seus filhos(as) recém-nascidos foram reivindicados pelos movimentos sociais e discutidos por órgãos governamentais, como o Ministério da Saúde (MS) e o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Foi reconhecida a necessidade do protagonismo dos Sistemas Único de Saúde (SUS) e Assistência Social (SUAS) no acompanhamento a este público devido à complexidade de suas necessidades. Propôs-se como fundamental nortear as ações dos gestores e profissionais de saúde uma vez que decisões imediatistas, como por exemplo, a retirada dos bebês das mães,  acabam por violar os direitos das mulheres, bem como da criança, causando danos irreparáveis à ambos. Recomendou-se o acompanhamento integrado antes, durante e depois do nascimento, de modo que a avaliação das condutas fosse feita caso a caso, respeitando assim as singularidades. (BRASIL, 2016). No entanto, é claro que, em função da complexidade das situações e das intensas disputas ético-políticas em torno do tema, recomendações, por mais acertadas que sejam, não são suficientes para produzir os enfrentamentos necessários para defesa, no caso, dos direitos das mães e das crianças.

Está em questão um julgamento moral sobre quem tem e quem não tem direito de ser mãe, o que autoriza o emprego da violência contra “uma vida que não vale a pena” em nome de outra a ser protegida, sem muita reflexão sobre os efeitos dessa separação violenta tanto sobre a “vida que não vale a pena”, como sobre a vida que supostamente está sendo defendida. Por isso mesmo existe um silêncio cúmplice em torno dessa violência!

Cuidar de modo conectado com a produção da vida, nas cenas acima,  coloca como necessidade fundamental a criação de uma rede de apoio para poder enfrentar estas situações violentas. Para isso é preciso problematizarmos a forma como estamos produzindo o cuidado na saúde, pois muitas vezes pautamos a gestão do cuidado no território de forma protocolar, baseada em padrões normativos de comportamentos. Sem levar em conta que para além dos padrões há uma vida que é produzida pelo usuário, que dificilmente consegue ser considerada na orientação produzida pelos trabalhadores de saúde.

Algumas falas de profissionais em serviços em que se realiza o pré natal trazem fortemente este preconceito: “a concepção este grupo está fazendo muito bem”, “não vai fazer controle, vai perder as medicações, etc.” Falas que fazem um juízo moral da situação da gravidez em si e colocam na mulher a responsabilidade por “aderir ou não “ao que é agendado, programado para seu acompanhamento, sem preocupação em compartilhar um plano de cuidado conforme suas necessidades /possibilidades.

Além de todos os direitos que foram negados a essas mulheres na construção do lugar que ocupam hoje, agora a subtração de um direito central: o de ser mãe, o de viver a maternidade. Mesmo que se diga que a condição socioeconômica não é motivo para retirada do pátrio-poder, para a mulher em situação de rua este tem sido um caminho sem volta.

 

 


Palavras-chave


Assistência Integral à Saúde; Pessoas em Situação de Rua; Violência contra a Mulher; Vulnerabilidade Social;