Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Cuidado em saúde: entre omissão e excesso, expectativas e afetos
Sidnei Jose Casetto, Angela Aparecida Capozzolo, Adriana Barin de Azevedo, Alexandre de Oliveira Henz, Andre Rodrigues, Harete Vianna Moreno, Fernando Pena Miguel Martinez

Última alteração: 2018-01-14

Resumo


Este trabalho apresenta dados parciais de pesquisa-intervenção realizada pelo LEPETS – Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Formação e Trabalho em Saúde – Unifesp/Baixada Santista, em onze Unidades Básicas de Saúde da cidade de Santos. Um dos objetivos da pesquisa foi cartografar experiências de cuidado de saúde em rede. Para tanto utilizamos uma metodologia qualitativa de perspectiva cartográfica, tendo sido selecionados, em conjunto com cada equipe das unidades, casos/situações a serem investigados. Foram realizados diversos encontros com usuários e demais envolvidos na sua rede de cuidado. A partir de diários de campo dos pesquisadores, os dados produzidos foram analisados. Apresentaremos aqui alguns resultados relativos ao objetivo citado, organizados em dois núcleos, sendo um deles referente aos limites do cuidado e o outro à compreensão do cuidado como relação.

1. Os limites do cuidado. As UBS devem responder pela morbi-mortalidade de seu território. Tal responsabilidade pressiona os profissionais a tentarem interferir ativamente em situações consideradas críticas, mesmo que não haja demanda por parte do beneficiário. Assim, realizam-se buscas ativas, campanhas, esforços de convencimento de mudanças de hábitos, presença de agentes comunitários de saúde nas moradias, levando e buscando informações, sendo um olhar do Estado sobre os cidadãos. Não fosse isso, muitos idosos, gestantes, bebês, hipertensos, diabéticos, tuberculosos, ficariam sem cuidado considerado adequado. Por outro lado, procura-se trazer o cidadão para a lógica do profissional de saúde: o que este considera certo fazer. Quanto maior é a responsabilidade depositada nele, mais ele se sente pressionado ao controle das condições de vida daqueles de quem está cuidando. Estes parecem ser os dois lados do PSF: mais ativos e presentes no território, os profissionais de saúde têm melhores condições de entender demandas, identificar e intervir em necessidades complexas, evitando reducionismos; em contrapartida, interferem mais na vida cotidiana, nos hábitos, nas escolhas, expandindo o discurso da saúde para diversas dimensões da vida. Isto não seria uma forma de medicalização?

O profissional de saúde parece sempre situado entre a omissão e o excesso, tendo que fazer o difícil cálculo que o mantenha neste intervalo. Cálculo difícil, também por não ter uma medida padrão: aqui pode-se interferir menos, ali deve-se interferir mais. Há que se decidir a cada caso. Não se trata de uma decisão meramente técnica; envolve concepções éticas: deixo Fulano, bastante já informado, em paz com sua dieta que o levará a complicações do diabetes? Respeito a resistência de Beltrana, por motivos desconhecidos talvez até pela própria, a cuidar de sua ferida na perna? No campo da saúde, tem-se também que tomar decisões que não têm sustentação somente técnica, e que, por vezes, têm a ver com não fazer algo, recuar da intervenção. Em outras situações, ao contrário, a avaliação das condições pode indicar uma ação bem além do que o protocolo estabeleceria.

A maior parte dos casos de que pesquisamos apresentavam dificuldades socioeconômicas. É perceptível que o profissional se vê diante de necessidades dos usuários que ultrapassam sua capacidade de intervenção, mas que incidem diretamente na saúde. A rede é acionada para ampliar estes limites, particularmente os recursos da Assistência Social (AS). Mas a lógica de intervenção da AS parece ser diferente daquela da saúde. Enquanto a primeira parece procurar, em sua ação, criar o mínimo de dependência possível, fazendo do recurso aos direitos um meio para o cidadão recuperar sua autonomia, a intervenção, no campo da saúde, está pressionada pela responsabilidade frente à manutenção da vida.

2. O cuidado como relação. Foi interessante notar que alguns profissionais consideram que o tipo de proximidade necessária à sua atuação ultrapassa aquilo que eles consideram como técnica, sendo, com frequência, situada no registro da "humanização". Em nosso ver, faz parte do cuidado, inclusive daquele do profissional. O fato do cuidado em saúde acontecer no âmbito de uma relação, dota-o de potencialidades, mas também de limites: tende a impor condições, mas pode ser recíproco; suscita sentimentos diversos, e alguns deles difíceis de manejar. Trataremos destes aspectos a seguir.

O cuidado profissional em saúde gera expectativas de lado a lado, inclusive por parte do profissional, que também as tem sobre o usuário: espera que ele aceite a oferta de tratamento ou de rearranjo de suas condições de vida. Quando isso não acontece, o que é frequente, parece ficar com a sensação de desconfirmação do próprio saber e da própria identidade profissional. Quando um paciente não segue a recomendação, não “adere" ao tratamento, resiste ao projeto terapêutico, produz um mal-estar no profissional, que sente seu estímulo ao cuidado diminuído.

Incomoda também um paciente reivindicativo. Espera-se, ao contrário, que o paciente seja receptivo. Supomos a cobrança como prerrogativa de quem cuida. Desse modo, poderíamos dizer que o cuidado que o profissional oferece é condicional: depende, para manter-se, da contrapartida que espera do paciente. Caso contrário, a tendência é ao desinvestimento. Os profissionais dificilmente reconhecem que isto ocorra com eles; por outro lado, dizem já terem percebido este desinteresse pelo não aderente ao tratamento acontecer com outros da equipe. Ocorre que, às vezes, o paciente não colabora quanto ao tratamento, mas tampouco quer desligar-se dele. Pode não se interessar pela “cura”, mas precisa muito do acompanhamento; não quer resolver o problema, quer manter-se em relação.

No âmbito de uma relação profissional de cuidado, costumamos pensar que é somente o profissional quem cuida; no entanto o cuidado parece reincidir sobre ele, na medida em que se reafirma em sua função, e também oferece reconhecimento, gratidão e ajuda. O cuidado parece ser uma via de mão múltipla. Em algumas situações acompanhadas a relação de cuidado deslocava os papéis inicialmente assumidos, surgindo um cuidado recíproco, e mesmo uma preocupação com a saúde do profissional por parte do usuário.

Um outro aspecto da relação de cuidado são os diferentes afetos presentes no processo. Um dos afetos percebidos na pesquisa é o medo que, por vezes, o profissional sente do paciente, do ambiente (contexto) que o envolve e, em situações específicas, também da gestão. A sensação de medo, a escolha em ser prudente e se proteger para que nada aconteça consigo, a capacidade de estar presente e acolher, na sua medida, aquele de quem se cuida, são componentes da relação que se arranjam ao longo dos encontros com o usuário e infletem sobre ela.

Concluímos que uma complexidade de aspectos relativa aos limites, às expectativas e aos afetos da relação de cuidado é manejada pelos profissionais e pelos usuários. Notou-se o quanto de cuidado há em evitar a imposição de modelos e em respeitar o tempo de cada um; que diversas formas se inventam a cada situação, desviando-se constantemente de protocolos, que, para além do cuidado técnico/profissional, outras formas ativam-se, produzindo híbridos, que tanto os modos de cuidado quanto os agentes podem ser inusitados e, de certo modo, imprevisíveis. Em síntese, não haveria um único modo profissional de cuidar e sim o desencadeamento de processos nos quais uma grande composição de saberes diversos, técnicas e éticas concorreriam, produzindo resultados inesperados. Boa parte destes processos seriam invisíveis, apenas insinuando-se à superfície da clínica.


Palavras-chave


cuidado; saúde; atenção básica