Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Off-sinas: brincar é coisa séria
Isabela Vilela Chimeli, Simonete Torres Aguiar, Clarissa Torres Aguiar

Última alteração: 2018-06-05

Resumo


Apresentação

A criança, ao entrar em um consultório de pediatria, leva consigo a trajetória de uma família, a realidade de um contexto social e os valores de uma cultura – esferas em meio às quais ela, exclusiva em suas características, emoções e desejos, estrutura sua forma de ser, de sentir e de agir. A criança chega, então, com um corpo que conta a história de suas relações, complexas e profundas, com outros indivíduos, ambientes e situações. Histórias que por vezes parecem destinos inevitáveis - uma sina. Mas que, como toda história, permanece sempre aberta para releituras e, portanto, para a reescrita de sua continuidade.

A invenção do neologismo Off-sinas aponta para o objetivo do presente trabalho: ofertar variadas possibilidades lúdicas, em um ambiente de muito acolhimento, para que as crianças possam narrar livremente seus desígnios. Através das artes e das brincadeiras, elas representam suas questões mais profundas, seus conflitos mais escondidos, cabendo aos “off-sineiros” deixar-se conduzir por suas mãos. As intervenções são feitas quando se abrem brechas para a reorientação da criança em sua própria existência. E muitas vezes são desnecessárias, já que a livre expressão é, por si só, uma poderosa e eficiente intervenção.

Descrição da experiência

Idealizado e orientado pela pediatra e homeopata Simonete Torres Aguiar, o projeto Off-sinas é fruto de sua ampla experiência no campo da pediatra. Nenete, como é conhecida, atuou em várias frentes até chegar ao consultório. Ao longo de sua trajetória, foi-se tornando evidente a necessidade de compreender a raiz dos sintomas físicos, levando-a a aprofundar o estudo e a observação das relações entre os adoecimentos, as emoções e as interpretações das crianças sobre suas experiências. Foi-se tornando também notória a eficácia da prática da escuta na prevenção dos sintomas e na recuperação da saúde. As Off-sinas foram então concebidas, enquanto tempos e espaços de valorização da expressividade, da percepção de si nas situações de vida e da conexão consigo.

As Off-sinas acontecem em um amplo quintal, repleto de brinquedos e materiais artísticos de toda ordem. As crianças lá brincam semanalmente, individualmente ou em grupos de até 4, sendo acompanhadas por 1 ou 2 “off-sineiros”. Elas dão o tom, a cor e o caminho das brincadeiras, que são sérias e, muitas vezes, impactantes. Criam suas metáforas, definem os papéis a serem vividos por si e pelos “off-sineiros”, representando suas angústias, receios e anseios. O projeto vem sendo desenvolvido há 17 anos, na Clínica Curandar, em Belo Horizonte, Minas Gerais, contemplando hoje uma média de 30 crianças, entre 3 e 13 anos de idade.  Em geral, as Off-sinas são indicadas para crianças que apresentam adoecimentos recorrentes ou que atravessam momentos de dificuldade.

A equipe de “off-sineiros” é multidisciplinar, composta atualmente pela Dra. Simonete Torres, por Juliana Chimeli (terapeuta ocupacional e leiturista corporal); Ana Nicodemo (artista plástica, arte terapeuta e terapeuta sistêmica); Davi Gardone (musicista, artista plástico e psicólogo); Clarissa Torres (cientista social); Ana Luiza Pereira (cientista social e estudante de psicanálise); Juliana Valadares (psicóloga) e Isabela Chimeli (cientista social, mestre em saúde coletiva e leiturista corporal). O caso de cada criança é cuidadosamente refletido e construído por toda a equipe, que se reúne semanalmente e conta com supervisões esporádicas, com o psiquiatra e psicanalista Stélio Lage; com Nereida Vilela (criadora da Leitura Corporal, vertente que estuda as relações entre os sintomas físicos e as emoções) e com a psicóloga e psicanalista Mônica Brandão. Com os “off-sineiros” é realizado um trabalho de constante formação e orientação, para que o olhar sobre as crianças seja cada vez mais expandido e diversificado, e para que as intervenções sejam cada vez mais adequadas e precisas. É também constante o cuidado com as questões pessoais dos membros da equipe, não raro suscitadas por esse envolvente trabalho.

As famílias são vinculadas ao processo através de encontros com a coordenadora e com os “off-sineiros” responsáveis, onde se busca construir pontes de compreensão e de acolhimento para as questões das crianças. Sempre preservando a privacidade do que acontece no espaço e no tempo das Off-sinas, o diálogo com os cuidadores intenciona trazer à tona as necessidades singulares de cada um, traçando rotas possíveis de atuação.

As Off-sinas, embora oficialmente dedicada às crianças, se desdobram como um trabalho terapêutico para todos os envolvidos. Brincar com o real facilita e, muitas vezes, ameniza o contato com aquilo que precisa ser visto, ordenado ou modificado.

Resultados

Recebemos uma criança que havia perdido o pai, depois de 4 meses doente. A filha, com 5 anos, ficara um pouco esquecida, entre tantos problemas mais urgentes. Chegando para a Off-sina, escreveu dentro de um coração: “Ufa!!! Finalmente chegou meu dia!”. E lá, brincamos algumas vezes de enterrar as cinzas do pai, a seu pedido. Seu pai era bonequeiro e, ela passou a fazer vários teatros, construindo bonecos incríveis de papel. Com isto, sua tristeza foi sendo encaminhada.

Outra criança que perdeu a mãe ao nascer, nas Off-sinas construiu várias possibilidades de ir ao céu - de trem, de avião, como borboleta. Foi e voltou várias vezes, até descobrir que prefere a Terra, e que pode ser feliz com sua mamãe daqui.

Mais uma, que quando convidada para brincar de teatro, responde: “Ah não! Vamos brincar de vida real!”. “Ok! E como vamos brincar de vida real?”. “Finge que você é nossa mãe e nos abandona!”. Seguimos com essa brincadeira até que passou seu medo tão sofrido do abandono materno.

São muitas, diversas e profundas as questões que a ludicidade faz surgir. Geralmente, em vigências do trabalho, as crianças param de adoecer. Sintomas recorrentes como bronquites, otites, infecções urinárias, dermatites, sinusites, etc. – todos, sem exceção, vão se tornando desnecessários. Uma vez expressos, os temas subjacentes aos sintomas podem ser reordenados, os sentimentos e pensamentos ressignificados, e o organismo – que abriga todas essas dimensões – tende a se reequilibrar.

Entendemos a saúde como um movimento dinâmico de capacitação para a travessia da vida. O alívio de poder falar, pintar, representar, desenhar e espernear as experiências mal digeridas ajudam as crianças na localização de si, nas suas próprias histórias e nas histórias daqueles que as cercam. Assim elas aprendem a se posicionar com presença e autenticidade e a lidar com as situações rotineiras e inesperadas da vida, desatando os nós que desordenam suas vivências

Considerações finais

A infância é o começo de todo indivíduo, de todo cidadão, de toda sociedade organizada. Para que os alicerces desta sociedade e sua cultura sejam firmes, bem estruturantes, é preciso rever o que traz saúde à infância, numa visão mais ampla e integrada.

A “criança” é uma categoria abstrata – o que existem são crianças, variadas em suas complexas e específicas interações entre desejos, interpretações, liberdades e proibições, além de toda a ambientação familiar, social e cultural. As intervenções no âmbito da saúde necessitam do compromisso com a singularidade e com a qualidade dos relacionamentos entre criança e cuidadores. A construção de vias para a prevenção e para a reestruturação da saúde é para cada indivíduo original, e quanto maior o grau de comprometimento de todos os envolvidos, mais perto da raiz dos adoecimentos -  e, portanto, dos processos de cura -  podemos chegar.



Palavras-chave


infância;singularidade;escuta