Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Genealogia da Lei 10.216 e a Política de Saúde Mental
Flavia Helena Miranda de Araújo Freire, Rafael Mendonça Dias, Paula Marques Klier Monteiro

Última alteração: 2017-12-22

Resumo


A reforma psiquiátrica brasileira, inspirada na psiquiatria democrática italiana, tem início no final dos anos 70, sendo protagonizada pelo movimento dos trabalhadores de saúde mental. Pautada em reivindicações de melhoria nas condições de trabalho e denúncias de mortes e maus tratos dos pacientes internados em hospitais psiquiátricos, este movimento, oriundo dos trabalhadores, centra-se na dimensão técnico-assistencial, defendendo duas propostas iniciais: Inversão da política nacional de saúde mental de caráter privatizante para estatizante; e Implantação de alternativas extra-hospitalares que significassem a inversão do modelo assistencial em saúde mental, ou seja, a transformação do modelo hospitalar para um modelo de assistência ambulatorial, bem como a transição de uma lógica curativa para um foco na prevenção e promoção no âmbito da saúde mental. Nesse período, a assistência em psiquiatria se apresentava eminentemente hospitalocêntrica de caráter privatizante, onde 96% dos recursos da política de saúde mental eram destinados ao custeio de leitos em hospitais psiquiátricos, em sua grande maioria privados, e apenas 4% destinava-se ao custeio da rede ambulatorial, de caráter público.

O início dos anos 80, até meados dessa mesma década, acumulou debates e mobilizações protagonizados pelos trabalhadores de saúde mental. A ampliação desse movimento de reforma ganhou envergadura de movimento social, em Bauru-SP, no ano de 1987, em meio ao II Congresso Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental, que culminou com a criação do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial. A luta passa a ser “por uma sociedade sem manicômios” encampada também pelos usuários, familiares e sociedade em geral.

Após a criação do Movimento de Luta Antimanicomial, fortalecendo o processo de Reforma Psiquiátrica, inaugurou-se o período de criação de um aparato legislativo com a submissão do Projeto de Lei 3.657 de 1989, que passou 12 anos em tramitação sendo aprovado apenas em 2001 com a Lei 10.216. A denominada Lei da Reforma Psiquiátrica propõe a garantia dos direitos dos pacientes internados em instituições asilares, bem como aponta, ainda que timidamente, para a reversão do modelo de assistência em saúde mental de base territorial.

O presente trabalho é fruto de pesquisa desenvolvida pelo Observatório de Políticas, Educação e Cuidado em Saúde Mental da Universidade Federal Fluminense campus Volta Redonda, e integrante do projeto nacional Observatório Microvetorial de Políticas Públicas em Saúde e Educação em Saúde, coordenado pela UFRJ em uma parceria interinstitucional com outras universidades. O objetivo desta pesquisa refere-se ao estudo genealógico da Lei 10.216, como marco legal da dimensão jurídico-política da reforma psiquiátrica e a constituição da política de saúde mental brasileira.

Ancorado no referencial teórico de Nietzsche e Foucault, aproximamos da concepção de genealogia como método de investigação da pesquisa, em busca de compreender a origem do movimento social de luta antimanicomial e de reforma psiquiátrica, culminando com a construção de redes de cuidado e de política pública no campo da saúde mental. Ainda, partimos da análise microvetorial que busca captar a intencionalidade dos atores envolvidos, bem como os efeitos da lei operados na política de saúde mental.

Nesse sentido, a pesquisa propõe: compreender e analisar os diferentes olhares sobre as proposições políticas emanadas do Poder Executivo, através de leis, normas, portarias para o campo da saúde mental, atentando para as disputas em jogo pelo modelo assistencial em saúde mental; avaliar os efeitos das proposições do marco legal nos aspectos micropolíticos e macropolíticos; analisar o processo de desinstitucionalização do aparato manicomial, atentando para a reversão do modelo assistencial; mapear a constituição da Rede de Atenção Psicossocial, bem como da Rede Intersetorial; analisar os aspectos da produção do cuidado aos usuários identificando a intencionalidade dos agentes quando se movem no jogo social desta produção.

A pesquisa, que se encontra em fase de andamento, investiga tanto o cenário nacional de construção da Lei 10.216 e seus efeitos na política nacional de saúde mental, como também se debruça na genealogia da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no município de Volta Redonda, a partir do mapeamento dos diversos serviços de saúde mental e da rede complementar intersetorial, que trabalham no acompanhamento das pessoas com transtornos mentais, investigando o desmonte do aparato manicomial do município e sua reorientação de modelo assistencial, a partir da construção de serviços substitutivos ao manicômio, e integrados em uma Rede de Atenção Psicossocial. A pesquisa está relacionada ao acompanhamento de decisões, leis, regulamentos e normas emanadas do Poder Executivo para o campo da saúde, considerando de forma central o que é proposto e os efeitos da sua aplicação na vida dos seus beneficiários - usuários.

Esta referida lei é fruto de um intenso debate e luta advindo do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil e do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial. Sancionada no dia 6 de abril de 2001, após 12 anos de tramitação do projeto de Lei nº 3.657 de 1989, que dispunha sobre a “extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta a internação compulsória”, a medida legislativa em Lei, resguarda o direito das pessoas com transtornos mentais, e aponta para o redirecionamento do modelo assistencial em saúde mental, priorizando o caráter de assistência extra-hospitalar de base territorial. Após um ano de sancionada a lei, foi publicada a Portaria 2.391 em 26 de dezembro de 2002, com o objetivo de “regulamentar o controle das internações psiquiátricas involuntárias (IPI) e voluntárias (IPV) e os procedimentos de notificação da Comunicação das IPI e IPV ao Ministério Público pelos estabelecimentos de saúde, integrantes ou não do SUS”.

No decorrer dos anos 2000, foram inaugurados diversos serviços substitutivos em todo território brasileiro, com ênfase no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) como serviço estratégico na política de saúde mental. Em 2011 o Ministério da Saúde regulamente os serviços de saúde mental articulados em rede, fortalecendo o caráter de regionalização e redes de atenção à saúde. O instrumento normativo dessa política é expresso pela Portaria nº 3.088 de 23 de dezembro de 2011, que “institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde”.

Os dados preliminares da pesquisa aponta para análise da expansão e busca de consolidação da rede substitutiva em saúde mental. Como efeito da lei podemos observar o direcionamento da política, com incentivo e linhas de financiamento específica para a ampliação de CAPS em todo território nacional. O ano de 2005 apresenta-se como um marcador de reversão do modelo assistencial do ponto de vista do financiamento, onde o gasto extra-hospitalar supera o gasto com hospitais psiquiátricos. Outro dado que merece destaque e maior aprofundamento, diz respeito às brechas que a lei apresenta quanto à permissão de criação de leitos em hospitais psiquiátricos, além da inclusão de Comunidades Terapêuticas na Rede de Atenção Psicossocial.

Em tempos de tamanha ameaça ao SUS, desmonte de estratégias na atenção básica, e ameaças de retrocessos na política de saúde mental e reforma psiquiátrica, almejamos que o Observatório de Políticas, Educação e Cuidado em Saúde Mental, com  os dados desse estudo, seja mais um dispositivo de investigação e pesquisa, que em produção com um corpo coletivo de pesquisadores, possa contribuir com a sustentação de uma política pública e de cuidado em saúde mental, cujos princípios antimanicomiais e de desinstitucionalização estejam no horizonte de sua defesa.


Palavras-chave


Política de Saúde Mental; Genealogia; Reforma Psiquiátrica; Luta Antimanicomial