Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Percepções sobre o trabalho e paradigmas da Rede Assistencial em Saúde Mental em Manaus
SIMONE CAMPELO, ADRIANA OLIVEIRA

Última alteração: 2017-12-26

Resumo


O presente relato fala sobre as percepções do trabalho na Rede de atenção à saúde mental em Manaus, a partir da experiência de Estágio do curso de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, em função das visitas realizadas a três dispositivos da Rede de proteção, o Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, que atende pessoas com transtornos mentais oferecendo serviços ambulatoriais e de internação, o Centro de Atenção Psicossocial Infantil–CAPSi, que oferece atendimento clínico e de suporte social exclusivamente para crianças e adolescentes portadores de transtornos mentais graves e persistentes, ou usuários de crack, álcool e outras drogas, e o CAPS AD III Dr. Afrânio Soares, que atende adultos com transtornos e problemas decorrentes do uso abusivo de álcool e outras drogas. Objetiva tecer uma discussão sobre a constituição da rede local, apresentar as percepções sobre o trabalho nos locais visitados, a partir dos discursos dos profissionais, e problematizar a relação entre os determinantes e condicionantes das dificuldades históricas da luta antimanicomial no estado do Amazonas.

Ao considerarmos a estruturação da Política Mental de Saúde no estado, verifica-se um paradoxo, tendo em vista que o Movimento da Reforma Psiquiátrica se iniciou na década de 70, por um grupo de profissionais do Hospital Colônia Eduardo Ribeiro, descontentes com as condições de trabalho, os serviços oferecidos aos usuários, e que, ao conhecerem as ideias da Reforma Psiquiátrica, se permitiram questionar as formas de tratamento dadas aos pacientes. A luta e os debates permaneceram por muitos anos, até que fosse aprovada em 2001 a Lei Federal que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial. No entanto, o cenário no Amazonas é marcado por contradições no contexto da Reforma, tendo em vista que a lei estadual de saúde mental foi sancionada somente em 2007, e ao conhecer o ambiente hospitalar do manicômio, notadamente marcado pela violência asilar, que resiste, mesmo após décadas de discussões, inclusive no imaginário da população local, pode-se afirmar que a política local ainda não logrou êxito na reforma, em função da disparidade entre a oferta atual de serviços substitutivos e a demanda da população que consegue chegar a um posto de atendimento médico. Este atraso histórico em relação a disponibilização dos serviços de tratamento que incluam a possibilidade de vivências além dos estigmas apresentados com o diagnóstico, proporcionado pela reinserção social, dificulta a reforma dos modos de pensar, corroborando assim, para que o sofrimento das pessoas portadoras de transtornos mentais e seus familiares, siga atuando como categoria de exclusão.

Nos dois Centros de Atenção Psicossocial visitados, apesar do atravessamento das adversidades estruturais, tais como falta de instalação própria da instituição e dificuldade de alcançar estratégias territoriais e comunitárias, os trabalhadores apresentaram discursos com sentido de eficácia por atenderam a demanda de portas abertas, há condições materiais e afetivas (disposição para fazer), e percebe-se parceria entre a equipe multiprofissional, que repercute no modelo terapêutico utilizado, além da inserção de profissionais de referência, contratados por meio de concurso público, proporcionar a manutenção de vínculos e continuidade da assistência nos diferentes níveis assistenciais. No hospital psiquiátrico a ordenação do trabalho demonstra a cronificação de um modelo que permanece com o passar das décadas, numa estrutura hierarquizada, que não dialoga com novos saberes científicos, nem com produções e práticas populares, que abordam outros modos de cuidados com o sofrimento psíquico grave, refletindo na concentração de um modelo de ciência que desconsidera o contexto amazônico, marcado por elementos de práticas integrativas e complementares ligadas à espiritualidade e remédios caseiros, que podem auxiliar inclusive na adesão e compreensão dos sujeitos em tratamento, considerando o elo que pode ser estabelecido com suas subjetividades. O discurso e  postura dos trabalhadores no local é de (im)potência e desesperança, e a percepção do sofrimento perpassa todo o ambiente, inclusive nas paredes desenhadas e rabiscadas pelos pacientes, que em decorrência de longas internações psiquiátricas, suas histórias e trajetórias de abandono, mais parecem personagens do impossível, o que reforça os estigmas impregnados no imaginário coletivo e a conformação com a realidade apresentada.

Ao refletir sistemicamente sobre a rede local, encontramos desconexões entre os campos macro e micropolítico, corroboradas por obstáculos culturais e epistemológicos, advindos do Estado, das equipes de trabalho e usuários. Considerando que historicamente os loucos não aparecem como foco nas ofertas de promessas de políticas públicas, há de se pontuar que transformações legítimas podem não ocorrer sem a participação de porta-voz do grupo, e é justamente a falta de espaços de fala, que podem gerar articulação dos usuários no campo micropolítico, que emperra mudanças no contexto local. O sujeito em sofrimento psíquico grave, especialmente em quadros de psicose, é o desafio posto à clínica, que tem a tarefa de o agenciar socialmente, e não se pautar em processos de cronificação que contribuiam para diminuir a vida, e é este mesmo sujeito que pode fazer sugestões para a melhoria dos serviços disponíveis. Considera-se a participação e o ativismo político dos usuários do serviço e seus familiares, bem como a visão dos trabalhadores de aliar política aos processos de trabalhos, essencial para que cesse ou diminua a reprodução de subjetividades assujeitadas à verticalidade da psiquiatria e às formas tradicionais de gestão que desumanizam e se dissociam da atenção, onde trabalhadores e usuários são reduzidos a condição de objetos que devem esperar por uma instância superior para produzir mudanças políticas. A “segurança” previamente definida e presente no discurso contribui para a manutenção das estruturas de poder que geram respostas despolitizadas, fato que dificulta a ruptura com o paradigma hospitalocêntrico presente na cidade de Manaus. Não é somente a existência de dispositivos de rede que garante o efeito de articulação, pois há o risco de se tornarem pontos isolados ou ligados pela burocracia a ponto de ficarem enrijecidos e cristalizados, sendo necessário também no campo organizativo cotidiano focar a importância e a potência da (co) construção pelos profissionais e equipes de referência como agentes de integração e conexões entre as redes assistenciais.

Uma fragilidade percebida foi o fato dos profissionais não citarem a corresponsabilização, que possibilita a ligação com profissionais da atenção básica, responsáveis pelos usuários de uma área adscrita, que possibilitaria melhor mapeamento e distribuição geográfica do serviço por zonas da cidade, criando vínculos entre profissionais do CAPS - profissionais da atenção básica,  além de fazer com que apenas a instituição deixe de ser referência, podendo refletir em protagonismo e satisfação no trabalho para o profissional e equipe de referência, tendo como consequência um espiral de melhorias no serviço. Assim, o objeto da rede assistencial em saúde mental em Manaus pode deixar de ser a doença mental, e passar a ser o sujeito em sofrimento em relação ao corpo social, e este, ao buscar ajuda, poderá dispor de suporte social pautado na compaixão e solidariedade dos profissionais, potencializados pela capacidade de construção de novas práticas ligadas à horizontalização de saberes e ampliação de espaços de participação para co-gestão.

 


Palavras-chave


trabalho, saúde mental, dificuldades históricas, reforma psiquiátrica U