Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A (DES)NATURALIZAÇÃO DA FILA: UMA FERRAMENTA PEDAGÓGICA NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE
Lilian F. B. Marinho, Renato Souza, Laio Magno

Última alteração: 2018-01-26

Resumo


 

Apresentação:

O subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS) impacta diretamente a diminuição da oferta de serviços de saúde, ocasionando filas em todos os níveis de atenção - primária, secundária e terciária.

As filas para o atendimento parecem estar naturalizadas e habitam o imaginário coletivo sobre o SUS, sendo continuamente abordadas pela grande imprensa. Para além de uma cena comum é preciso problematizar sua existência, do ponto de vista sociopolítico e pedagógico.

Conhecer a realidade de um serviço de saúde, para formar profissionais críticos, nos motivou a buscar estratégias pedagógicas mobilizadoras de sentimentos, reflexões, desejos, falsos conceitos, (pré)conceitos e confrontos de significados e experiências. O desafio de articular, no espaço das práticas, os elementos teóricos da Atenção Primária à Saúde (APS), tendo como ponto de partida a perspectiva do usuário, nos motivou a “dialogar” sobre e com as pessoas que vivenciam a fila em uma Unidade de Saúde da Família (USF), em Salvador-Bahia.

De um modo geral, o acolhimento das/os usuárias/os nos estabelecimentos de saúde tem sido pensado, com ênfase nos “novos modos de cuidar e novas formas de organizar os serviços” (BRASIL, 2013) sem problematizar a situação de quem não consegue adentrar os serviços.

Desse modo, o objetivo deste relato é refletir sobre uma experiência de formação que utiliza o diálogo diário com as pessoas na fila como uma prática pedagógica crítica.

Desenvolvimento do trabalho:

O diálogo com as pessoas da fila ocorreu no âmbito das práticas do componente curricular Enfermagem na Promoção da Saúde e Vigilância em Saúde, que está alocado no 4º semestre da matriz curricular do curso de enfermagem da Universidade do Estado da Bahia.

Utilizou-se o referencial do Arco de Maguerez (apud PRADO et al., 2007) que compreende: observação da realidade, identificação dos pontos-chave teorização, hipóteses de solução e aplicação à realidade

Primeira etapa: observação da realidade

O olhar de estranhamento em relação às filas na USF, e as situações de tensões expressas por usuárias(os) do serviço foram os disparadores da nossa observação. A partir daí, buscou-se explorar as potencialidades e pensar os recursos didáticos a serem utilizados para a interação com as/os usuárias/os. A aproximação da realidade foi bastante reveladora de discursos heterogêneos e por vezes contraditórios, num contexto de não direitos à saúde em diversos momentos.

Segunda etapa: identificação dos pontos-chave

Nas conversas iniciais, feitas de modo assistemático e em pequenos grupos, notou-se a inibição das pessoas, dificultando o diálogo. A partir daí a abordagem passou a ser individual e ancorada em um roteiro. Este aporte foi adotado com o intuito de direcionar a conversa com as(os) usuárias(os) tornando possível ouvir queixas relacionadas ao local da formação da fila,  tempo de espera para a abertura dos portões, desinformação em relação ao funcionamento da USF, mas também elogios diversos e reconhecimento ao trabalho dos profissionais, entre outros

Terceira etapa: teorização

Os textos de Paulo Freire foram o fio condutor para pensar na importância do cotidiano de um serviço de saúde e a sua relação com os conteúdos do componente curricular. Entender, ouvir e “dar voz” às pessoas a partir da observação direta, e articular com a teoria foi importante para a compreensão da Estratégia de Saúde da Família – direitos, vínculo, longitudinalidade, resolutividade, dificuldades do sistema de regulação e as restrições no acesso, entre outros.

A partir dos elementos observados na fila e dos questionamentos apresentados, as discussões aconteceram ao final de cada turno da prática. Aspectos relacionados à: universalidade, integralidade, equidade e participação popular foram os mais recorrentes.

Adicionalmente, apoiamo-nos nas categorias apresentadas por Melo, Cecílio e Andreazza (2017) em relação às demandas: “demandas não atendidas”, “demandas atendidas” e “respostas múltiplas para demandas complexas”.

Foi possível também introduzir a reflexão sobre a dominação exercida pelos micropoderes existentes nas instituições, por meio de seus agentes, como uma prática social relacional (FOCAULT, 2007) em que, a organização das filas é feita segundo critérios estabelecidos pela gestão local, sem participação das/os usuárias/os dos serviços.

Quarta etapa: identificação das hipóteses de solução

Inicialmente, o debate sobre possíveis soluções foi circunscrito ao diálogo discente/docente e sinteticamente estão relacionadas a dois grupos de questões: o primeiro diz respeito aos mecanismos institucionais que provocam retorno à fila, sistema de regulação para consulta especializadas e exames, desinformação quanto ao modelo assistencial, e o segundo a prática dos “olhos míopes”, uma metáfora para dizer que a fila compõe o cenário das manhãs sem qualquer problematização.

A desconstrução da naturalização da problemática da fila e da percepção da realidade como imutável tornou-se um ponto forte do diálogo discentes/docente.

Quinta etapa: aplicação à realidade

Paulatinamente, as/os profissionais da USF passaram a ser informados sobre o que fomos acumulando nas sucessivas observações/aproximações. O relato de estudantes, mediado pela docente, vem causando algumas reflexões e discussões importantes, sem, no entanto, implicar mudanças práticas, até o momento. As tentativas de conversa com a direção da USF começam a se aproximar do momento esperado: a transformação na perspectiva dos direitos e da humanização das relações.

RESULTADOS

OS resultados têm se mostrado surpreendentes no que diz respeito aos entraves que geram a fila, além de estabelecer uma relação dialógica docente-discente ao analisar diferentes percepções e opiniões (FREIRE, 1996).

A partir da constatação de que há um ordenamento e obedece a critérios, nem sempre claros a quem frequentemente está na fila, percebeu-se o quanto as pessoas “falam”, “gritam”, propõem e informam sobre a utilização dos serviços oferecidos na USF, e na rede pública ou conveniada.

Vislumbra-se com essa ferramenta contemplar dimensões indissociáveis – teoria e prática – na medida em que auxilia a articulação de conteúdos diversos, desenvolve habilidades na abordagem e escuta qualificada, entre outros aspectos.

É plausível pensar, a partir dos relatos das pessoas da fila, que discentes e docente na condição de perguntar e ouvir tenham tido a competência de produzir narrativas a partir do vivenciado, e a compreensão da importância da superação do modelo médico-assistencial curativo e hospitalocêntrico.

O relato oral diário possibilitou organizar as ideias de modo a deixar claro o que se (trans)formou a partir da experiência vivida. A reflexão produzida pelos grupos de prática, na elaboração de relatórios, mostrou que ao explicar o vivenciado é possível descobrir novos elementos necessários à compreensão dos fatos e o comprometimento com a defesa de um sistema de saúde universal, público e de qualidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A fila como ferramenta pedagógica possibilita mediar o processo de aprendizagem na APS, de forma ativa, podendo ser explorada em diferentes vertentes, tais como: princípios e diretrizes do SUS, gestão, comunicação e, sobretudo, participação popular.

Ao apontar possibilidades de acolhimento (escuta qualificada) das demandas, na perspectiva do direito à saúde, tornou-se possível pensar as filas como espaços de enfrentamento das relações de poder, mas também de afeto por meio de práticas humanistas. As racionalidades e condicionalidades institucionais e políticas podem dificultar a desnaturalização das filas nos serviços de saúde.

O resultado autoriza recomendar a utilização da fila para apoiar descobertas e reflexões dos sujeitos sobre a realidade.

 


Palavras-chave


Acolhimento, Formação profissional; Atenção Primária à Saúde