Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Reflexões sobre um currículo argiloso e o potencial da educação popular na formação de trabalhadores e movimentos sociais em defesa do SUS
Grasiele Nespoli, Irene Leonore Goldschmidt, Ronaldo Travasso, Julio Alberto Wong-Un, Marcelo Princeswal, Luanda de Oliveira Lima, Vera Joana Bornstein

Última alteração: 2017-12-27

Resumo


A institucionalização da Educação Popular, por meio da Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS), consolida um processo de luta histórica dos movimentos de educação popular e evidencia sua importância no campo da saúde. A educação popular é reconhecida por se fundamentar em princípios e práticas contrários aos modelos hierarquizados, autoritários e norteados por uma perspectiva de educação elitista ou, como diria Paulo Freire, bancária.

Foi no âmbito do Plano Diretor da PNEPS-SUS que teve origem o curso de Educação Popular em Saúde (EdpopSUS), primeiramente como um curso de sensibilização, promovido pelo Departamento de Apoio à Gestão Estratégica e Participativa da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde (DAGEP/SGEP/MS) e coordenado pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), em parceria com a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), ambas unidades da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Essa fase foi desenvolvida de 2013 a 2014, ofertou dezenove mil vagas e envolveu nove unidades da federação: Bahia, Ceará, Distrito Federal, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe.

A avaliação positiva da experiência do curso indicou a importância de sua continuidade. Em 2015, se iniciou a elaboração da segunda fase, agora como um curso de aperfeiçoamento com carga horária de 160 horas e sete mil vagas oferecidas em treze unidades da federação (Bahia, Ceará, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe). Como desde seu início o curso foi prioritariamente para agentes comunitários de saúde e agentes de vigilância em saúde, trabalhadores de nível médio, a coordenação da segunda fase passou para a EPSJV, instituição que tem se dedicado, dentre outros projetos, à formação técnica desses trabalhadores.

A experiência de construção do EdpopSUS foi permeada por muitas inquietações, sendo que a mais importante diz respeito à contradição de se instituir um curso de educação popular num currículo nacional, uma vez que o método da educação popular parte sempre do diálogo, das experiências e da participação dos sujeitos, do inédito e do inusitado, da realidade que os cercam e os constituem. Nesse sentido, lançamos uma série de questões iniciais. É possível operar por essa contradição e construir uma unidade do processo educativo que considere a diversidade de sujeitos e realidades onde o curso acontece? É possível sugerir um caminho que dê abertura a novos arranjos e estratégias pedagógicas? Como traçar uma proposta que respeite a autonomia dos educadores e educandos, sem ferir as intencionalidades de um curso de educação popular? Enfim, como garantir que o caminho proposto não se torne rígido, cristalizado, autoritário, se contrapondo à educação popular?

Para enfrentar essas questões, foram realizadas quatro oficinas nacionais com aproximadamente noventa participantes de instituições e movimentos implicados no curso. Após avaliação da primeira fase do EdpopSUS, teve início a construção curricular e do material educativo que iria servir como fio condutor da segunda fase. O coletivo envolvido na construção do EdpopSUS, coerente com os referenciais da educação popular, tomou o currículo como instrumento de ação política e pedagógica, como um plano de intencionalidades, princípios, estratégias e conteúdo dirigido à formação de trabalhadores e lideranças sociais.

A principal intencionalidade, objetivo do Ministério da Saúde quando implementou o EdpopSUS, é o fortalecimento e a divulgação da PNEPS-SUS. Os princípios estavam definidos na própria política, o que, por sua vez, ia ao encontro dos princípios da educação popular: diálogo, problematização, amorosidade, construção compartilhada do conhecimento, participação democrática e popular. Nesse contexto, as estratégias político-pedagógicas deveriam preservar os princípios e os conteúdos garantir a discussão sobre direito, democracia, trabalho, cuidado, práticas educativas, território, história, dentre tantos outros temas levantados. Foram muitos os arranjos feitos até chegarmos numa proposta.

Assumimos que a educação popular tem um acúmulo que permite traçar um currículo com certo grau de envergadura, pautado no diálogo e na participação democrática de educadores e educandos, organizado em eixos temáticos, encontros e atividades pedagógicas que tenha como ponto de partida as experiências dos participantes, e que possam compartilhar conteúdos considerados fundamentais para a formação dos trabalhadores e lideranças que atuam no campo da atenção básica, em especial, da estratégia saúde da família.

Depois de muito debate, consolidamos seis eixos temáticos, organizados em encontros para serem mediados por dois educadores populares em cada turma, composta por até 35 educandos. Cada encontro tem seus objetivos definidos (de acordo com as intencionalidades dos eixos) e atividades propostas com base na experiência dos educandos e que integram à experiência reflexões críticas. Os eixos temáticos são: 1) A construção da gestão participativa e a experiência como fio condutor; 2) A educação popular no processo de trabalho em saúde; 3) O direito à saúde e a promoção da equidade; 4) Território, lugar de história e memória; 5) Participação social e participação popular no processo de democratização do Estado; 6) O território, o processo saúde-doença e as práticas de cuidado.

Para expressar a proposta curricular, o material educativo foi composto por dois livros: 1) o Guia do curso, que apresenta os eixos temáticos, ordena os encontros e sugere atividades pedagógicas que visam promover um exercício de ação-reflexão-ação; 2) um compêndio de textos de apoio que organiza e disponibiliza o conteúdo abordado no curso. O material educativo foi pensado no sentido de favorecer um caminho comum para as diversas experiências vivenciadas, sem, no entanto, engessar o processo, visto que o fundamental é garantir a coerência com os princípios políticos-pedagógicos da educação popular que norteiam o Edpopsus.

A experiência do EdpopSUS, analisada e sistematizada pela coordenação nacional, tem revelado que a riqueza da educação popular está na sua porosidade ao imprevisível, à experiência dos sujeitos e à realidade das diversas regiões, cidades e territórios onde o curso acontece. Observamos, pelos relatos e memória de educadores, nos seus diários de encontros (campo de registro inserido dentro do Sistema de Gestão Acadêmica do curso), e pelas cartas elaboradas pelos educandos (cartas de expectativas e de experiência - atividades propostas no curso), que o currículo do EdpopSUS é um chão de argila, moldado pelas mãos de um coletivo diverso, unido pela luta e defesa do direito à saúde.

De modo geral, a trajetória formativa segue o plano inicial, mas muitos arranjos são feitos, atividades propostas, dinâmicas inseridas, textos substituídos, vídeos e outros recursos usados. A educação popular preza pela autonomia e participação dos sujeitos. Nos encontros não cabem prescrições, prevalecem os estranhamentos, os questionamentos e as problematizações. O reconhecimento dos saberes populares e das memórias, o incentivo à participação social e popular, a problematização do trabalho e a integração das práticas de cuidado, respeitando a diversidade cultural dos territórios e dimensões como a cultura, a arte e a espiritualidade, são temas/conteúdos que despertam e fortalecem atitudes e práticas de enfrentamento dos modos de exploração, opressão, discriminação, mercantilização da saúde e medicalização da vida.

Por fim, vale dizer que o EdpopSUS é um projeto sensível a análise da conjuntura política e, nesse sentido, se constitui como uma importante estratégia que, pela formação, alcança milhares de trabalhadores e lideranças de movimentos sociais, alimentando uma perspectiva político-pedagógica contrária às iniciativas acirradas com o golpe político que instaurou uma onda conservadora e de retrocessos nas políticas públicas no país.


Palavras-chave


educação popular, trabalhadores, movimentos sociais