Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Para além da técnica: contribuições do pensamento de Martin Heidegger para a formação do psicólogo clínico
Cleison Guimarães

Última alteração: 2018-01-06

Resumo


Embora a psicologia clínica ocupe um espaço bastante consolidado no campo das práticas psicológicas, consideramos que a formação do psicólogo clínico ainda é um tema não suficientemente tematizado nos contextos acadêmico e profissional. Neste trabalho pretendemos dirigir a reflexão na direção de alguns aspectos que perpassam a formação do psicólogo clínico a partir das contribuições de uma perspectiva fenomenológico-existencial, entendendo que essa formação ocorre, inevitavelmente, a partir da experiência do psicólogo, sendo esta, a experiência, aquela que embasará toda a pesquisa e reflexão. No sentido oposto ao cenário cientificista que ainda prevalece no campo da psicologia, a perspectiva abordada aqui aponta para uma atitude fenomenológica, a qual contraria a atitude natural, esta que subsidia, em grande parte, o aporte epistemológico cientificista sobre o qual a psicologia se pautou desde quando se afastou do campo da filosofia, passando a adotar o paradigma científico. Contrariamente à dimensão científica da psicologia, a perspectiva fenomenológica com base na fenomenologia hermenêutica heideggeriana, considera a ideia de um Dasein que existe num horizonte de abertura de sentidos e sobre o qual não caberia qualquer determinação, como apontam os pressupostos de uma ciência que adota como critérios de rigor a objetividade, generalização, controle e previsibilidade. As reflexões feitas, as quais, na verdade, as considero mais como interrogações e estranhamentos que desejo partilhar com aqueles envolvidos com o tema, dizem respeito ao âmbito da formação de psicólogos. Como já apontamos a marca tecnicista através a formação do psicólogo, e em termos heideggeriano, podemos apontar a presença de um pensamento calculante, o qual se caracteriza pelo cálculo; e ainda que tal pensamento não se opere com máquinas e números, envolve o planejamento e calcula, por isso ele torna-se adequado aos afazeres e práticas cotidianas, que pedem urgência, eficiência e rapidez na eliminação do sofrimento. Mas, é importante frisar que durante a prática psicoterápica estamos lidando com a complexidade de um ser que atribui sentidos à sua existência e, portanto, singular. Assim, haverá, sempre, algo que ficará de fora do representado, o imponderável, aquilo que não se prevê e nem se deixa controlar; melhor dizendo, algo não dito e cujos sentidos se desvelam à medida que somos-no-mundo. Entretanto, ao se adotar uma perspectiva fenomenológica - nesse caso, a fenomenologia hermenêutica heideggeriana - tal propósito calculante perde o sentido, uma vez que essa perspectiva aborda o Dasein na sua irredutível condição de indeterminação e poder-ser; com isso, afasta-se radicalmente dos critérios tradicionais de cientificidade. Com isso, algumas interrogações daí se originam: como ocorre a formação de um psicólogo clínico nesta perspectiva, sabendo-se que a atitude fenomenológica representa um modo-de-ser e, portanto, inacessível a qualquer objetivação? Até que ponto é possível desenvolver uma atitude que se ampara na experiência, e que se dá, originariamente, na existência, sabendo-se que esta é fluida, provisória e impossível de ser objetivada? Além do que, esta atitude, como é sabido por aqueles que se identificam com as perspectivas fenomenológicas e existenciais, não se alcança exclusivamente por meio das teorias psicológicas, das filosofias, mas, sobretudo, da reflexão meditante sobre a experiência de ser-no-mundo. Como, então, lidar com a atitude natural que perpassa, de uma maneira geral, a maioria dos currículos do curso de psicologia e que inevitavelmente, incide nas práticas psicológicas clínicas? Como sensibilizar o aprendiz de psicoterapeuta no sentido da desconstrução de um saber técnico sobre o qual a Psicologia, como ciência e profissão, se encontra, tradicional e historicamente assentada? Enfim, como desenvolver uma atitude fenomenológica sem que esta corra o risco de se transformar em mais uma técnica? Para isso, é pertinente questionar o uso do termo "formação", no contexto da perspectiva em questão. O que significa "formar"? Neste trabalho o termo formação é entendido como um processo, o qual comportaria, sem dúvidas, a concepção de uma experiência existencial, de um poder-ser, portanto, inacabada. Nesse sentido apontamos como contribuição a formação o que Heidegger chama de compreensão e pensamento meditante através da prática da serenidade e de atitude fenomenológica. Inicialmente, refletir uma proposta de prática clínica a partir do pensamento de Heidegger é propor uma ação clínica pautada num pensar profundo na busca de significados últimos e sem pressa, na busca da compreensão enquanto ato de pensar que também busca o significado dos acontecimentos, mas não de forma genérica. A compreensão emerge e responde às urgências da vida, partindo da concretude da existência e retornando a ela. Um caminho de reflexão propõe um modo de abertura traduzido como serenidade. A serenidade, portanto, constitui o pensamento meditante o qual nos solicita a uma atenção livre de qualquer violência subjetiva, isto é, de qualquer identificação a um aspecto exclusivo das coisas. Tomando como referência as ideias refletidas até aqui, podemos dizer que escolher um caminho profissional pautado na perspectiva fenomenológico-existencial implica um determinado olhar sobre os entes e o mundo. Um olhar que interroga, que não aceita, passivamente, as verdades instituídas. Um olhar que na clínica, por exemplo, não adota, sem questionar, os rótulos instituídos pelos campos de saber que costumam nomear e classificar, de forma generalizada, o sofrimento, de acordo com os seus manuais de transtorno mentais, já tão bem assimilados pelo senso comum. A atitude fenomenológica se ancora num modo-de-ser, e portanto, se faz a cada momento da experiência. Com isso, pensamos que a formação trataria de criar espaços nos quais esse olhar que interroga pudesse se expressar e, sobretudo, sustentar as tensões que essa forma de ser e de um não-saber, favorecem. Proponho que um caminho primordial na formação sobre a qual refletimos, seria exercitar um fazer-saber pautado na experiência singular, exercitando o pensamento meditante, uma vez que o pensamento que calcula não é um pensamento que medita, não é um pensamento que reflete sobre o sentido que reina em tudo que existe. Para Martin Heidegger, o caminho do pensamento que medita sobre o sentido das coisas também não representa um caminho fácil, e afirma que um pensamento que medita surge tão pouco espontaneamente quanto o pensamento que calcula. O pensamento que medita exige, por vezes, um grande esforço. Requer um treino demorado. Carece de cuidados ainda mais delicados do que qualquer outro verdadeiro ofício. Contudo, tal como o lavrador, também tem de saber aguardar que a semente desponte e amadureça. Ao final dessas reflexões constatamos que muitas questões foram lançadas, pensadas e refletidas. Não queremos dar respostas conclusivas e definitivas, como era de se esperar, uma vez que estamos tratando de uma prática clínica que representa muito mais uma postura do que a aplicação de teorias e técnicas psicológicas. Portanto, as reflexões empreendidas aqui visam a enriquecer o diálogo e a interlocução entre todos os que compartilham as preocupações surgidas no âmbito da formação de psicólogos.

Palavras-chave


psicologia clínica; formação; educação; fenomenlogia;