Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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APROXIMAÇÕES ENTRE PRÁTICAS POPULARES DE CUIDADO E O SABER ACADÊMICO: o encontro com uma parteira tradicional
Márlon Vinícius Gama Almeida, Kátia Cordeiro Antas

Última alteração: 2018-01-11

Resumo


APRESENTAÇÃO: Zefa da Guia é parteira tradicional, benzedeira e líder comunitária de uma comunidade rural sergipana. Sua sabedoria, adquirida ao longo dos anos, traduz-se na influência quanto ao cuidado das pessoas que a procuram diariamente. Seu primeiro parto foi feito aos 11 anos de idade e, atualmente, aos 73 anos ela contabiliza mais de 5.000[A]. Sua forma visceral e organizada de compreender a vida é apresentada na sua linguagem própria, que resiste a todas as orientações da gramática e intervenções tecnológicas. Mesmo com a pouca instrução formal, Dona Zefa sabe muito do mundo, e todo este arcabouço a torna única, no cenário em que vive. Neste contexto, o presente trabalho tem como objetivo relatar o encontro, as trocas e significações que envolvem conhecer uma parteira tradicional. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO: No dia 23 de setembro de 2017, a Liga Acadêmica de Produção de Cuidados e Sensibilidades (LAPCS), da Univasf, campus Paulo Afonso, BA, desenvolveu nesta localidade uma visita técnica de caráter extensionista. Em consonância com os temas abordados durante as reuniões quinzenais da liga, sobretudo no que diz respeito às propostas populares de cuidado em saúde, dando ênfase às discussões sobre parto, maternidade, cuidado e vida, observou-se a necessidade de uma vivência que pudesse aproximar, de maneira prática, tais elementos da academia e ultrapassasse os muros da universidade. No que se refere à sistematização do processo, inicialmente, foi proposto pela coordenação da liga a realização de um café da manhã, seguido por uma roda de conversas com Zefa da Guia. Liderança local, ela está sempre presente nas lutas locais e regionais por reivindicações de terra, demarcação de territórios tradicionais, acesso à educação, melhorias para a comunidade e a propagação do sentimento de pertencimento e valorização à terra natal. RESULTADOS: Durante o diálogo, buscou-se conhecer elementos principais sobre a vida e ações dessa mulher. A fala lúcida e empoderada sobre a importância do oficio de parteira, sobre ações sociais e sobre sua espiritualidade, chamou a atenção dos participantes para o agir militante presente na líder comunitária, ao mesmo tempo em que, refletiu, também, o respeito às singularidades de cada indivíduo; valorização da equipe de saúde multiprofissional e do saber popular. Tal atividade transbordou as expectativas almejadas inicialmente, com destaque para a percepção dos papéis sociais desempenhados por figuras centrais, como a da própria Zefa da Guia, e a aproximação dos modos de edificação, nos microespaços, do desenvolvimento rural, a exemplo da dinâmica de organização dos trabalhadores e suas famílias no contexto em que se inserem. Dona Zefa traz luz no olhar e pureza na alma, ao mesmo tempo que exala a força de quem não foge ao fato de ser uma sertaneja, descendente de povos índigenas e ex-escravos. É carinhosa, afetuosa, abraça a todos, mas deixa claro em suas palavras que não permite abusos, nem a si e nem aos seus. Ela narra sua história com a precisão de quem sabe de onde veio e para que veio, sem titubear nem uma vez. Fala da sua missão nesta vida e gosta de dizer que “não sei ler nem escrever e nunca precisei; está tudo na minha mente”, nos esbofeteando com a certeza de que a sabedoria não vem dos livros, apenas. Um fato que chama atenção e merece ser destacado diz respeito ao momento em que nos recebeu. Dona Zefa vinha da igreja. Tinha ido agendar a missa de 30 dias de falecimento de uma de suas filhas. Ao olhar para ela procurando sinais de uma mãe enlutada, ela responde: “Deus levou. Era dele. Ele sabe”. É surpreendente a sua compreensão e fé. Impossível é tentar minimamente criticar ou até entender a forma como aquela mulher conduz a própria vida. Certamente os poucos saberes trazidos da academia, por nós, diluem-se como pó ao vento perto dos seus, mas sobra-nos alguns poucos elementos sensíveis que são suficientes para reconhecermos sua singularidade, força e sabedoria. O que se percebe é que o saber popular de Dona Zefa da Guia não apenas conquista os ouvintes, mas é capaz de gerar uma sensação de empatia tamanha que não é mais possível aceitar apenas o modelo biomédico como único legítimo e eficaz. Os saberes diferentes se somam, nesta seara de experiências, demarcando que o lugar de sabido é apenas um ponto de vista. Outro ponto importante, que se adiciona a sabedoria de Zefa e reforça o seu lugar de cuidadora, é o de ela entender, a partir de sua sensibilidade, que não são todos os partos que, em seu oficio, a mesma consegue realizar. Ao perceber a necessidade de uma intervenção cirúrgica ela encaminha a parturiente para assistência médica. Em contrapartida, o respeito aos saberes de Dona Zefa deve ser estimulado, uma vez que “ela orienta, comunica, ensina, procura os pacientes” e junta esforços na corrente por uma melhor qualidade de vida para a população[B]. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A partir desse pressuposto, é esperado que o legado de uma guardiã do saber popular, como é o caso de Zefa da Guia, aponte para um redirecionamento do estudante ou profissional de saúde, para que este se perceba enquanto sujeito promotor da saúde. Tal papel é solidificado através das trocas de saberes e sensibilizações que permeiam o conhecimento dos povos tradicionais, em consenso com o que o meio acadêmico pode proporcionar. É preciso que o diálogo horizontal entre a comunidade e o meio acadêmico seja estimulado cada vez mais. Ademais, é evidente que não se deve construir conhecimento pautado na lógica de um poder enraizado e verticalizado. A roda de conversa com Zefa da Guia deixa claro que existem novos modos de se fazer saúde, sobretudo no que tange a promoção e prevenção, que perpassam a valorização da cultura e dos ensinamentos tradicionais. Perceber que existem saberes diferentes, mas que se somam e se interseccionam é um passo importante na construção de uma clínica ampliada, na qual o sujeito é o centro do cuidado e sua família e comunidade são elementos importantes no processo terapêutico e na efetivação de uma prática integral. Reconhecer, por fim, como o mundo seria mais justo e generoso se tantas outras Donas Zefas existissem, é crucial. Mas, ela é única, lembra?

Palavras-chave


Práticas populares de cuidado; Saber popular; Universidade.