Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A (trans)formação em saúde pela experiência do encontro: vivendo o PET-Saúde/GraduaSUS em uma comunidade quilombola
Barbara E B Cabral, Gabriela da Silva Barros, Lorena Silva Marques, Arthur Antunes de Souza Pinho, Itala Silva Mota, Milena Vitor Gama Duarte, Karoline Barros Conceição, Mayta Carvalho Trajano Leite

Última alteração: 2017-12-27

Resumo


Objetiva-se narrar aspectos da experiência vivida por um dos Grupos de Trabalho/GTs do projeto PET-Saúde/GraduaSUS da Universidade Federal do Vale do São Francisco/Univasf, com atividades em curso há um ano e meio, articulando ensino-pesquisa-extensão em – e tendo como base – Lage dos Negros, território quilombola, pertencente a Campo Formoso-BA. A aproximação com essa realidade tem surpreendido a cada imersão cartográfica, tanto pela riqueza afetiva e simbólica do povo daquele lugar quanto pela percepção dos efeitos da violência relacionada ao racismo. Pelo visto e vivido na comunidade, fica evidente que nosso país não é o país da democracia racial, sendo fácil constatar isso na aproximação com o lugarejo, que luta para garantir acesso a políticas públicas. A comunidade localiza-se no meio do semiárido baiano, sofrendo com todas as dificuldades que tal localização, no meio rural, pode infringir aos seus moradores/as. Uma particularidade a destacar é a alta prevalência de casos relacionados à Saúde Mental, tendo sido essa a demanda apresentada ao Coletivo PET-Saúde/GraduaSUS por profissionais do Centro de Atenção Psicossocial/CAPS da cidade. Tais profissionais são preceptoras (Terapeuta ocupacional e Assistente Social) do GT, que na sua composição reúne tutores (Psicologia e Farmácia), graduandos (Psicologia, Farmácia e Medicina) e residentes (Saúde Mental e Saúde da Família). Apesar da alta demanda em saúde mental, o único serviço de saúde presente no território é uma Unidade de Saúde da Família. Em relação a serviços especializados, a oferta terapêutica parte do CAPS municipal, que se localiza a cerca de 100km de distância do povoado. A partir do desafio apresentado, decidimos que as ações seriam elaboradas e executadas em estreita articulação com os moradores/as, nos modos de uma pesquisa-intervenção, seguindo as pistas da cartografia, tendo como mantra “a aproximação ensino-serviço-comunidade”, valorizando a experiência (vivida e elaborada, pelas afetações) e assumindo o encontro como método. Assim, o GT vem construindo ações que dizem de possibilidades voltadas para o cuidado em Saúde Mental, buscando conhecer e enfatizar, de modo precípuo, as potencialidades do território. O envolvimento da comunidade no projeto, através de lideranças e agentes comunitários de saúde, tem sido destacado como aspecto imprescindível em cada passo dado, realizando-se um exercício contínuo de corresponsabilização. Nessa perspectiva, em uma roda de conversa inicial com parceiras/os da comunidade, dois eixos de intervenção foram definidos como prioritários: 1. Cuidado à/ao usuária/usuário e família e 2. Educação em Saúde e Empoderamento Social. “Ser negro é algo que dói na pele”, nos disse uma líder comunitária nessa primeira roda, causando-nos tristeza e, em igual medida, vontade de pensar junto com os/as moradores/as modos de encaminhar essa demanda de fortalecimento do protagonismo negro. Não nos custou muito tempo tecer a compreensão de que cuidar disso seria, também – e talvez, fundamentalmente – cuidar em saúde/saúde mental. As atividades vêm sendo articuladas por meio de diferentes estratégias, a exemplo de rodas de conversa com usuários e familiares; formação sobre grupos de ajuda/suporte mútuos em saúde mental, que visam fortalecer o protagonismo da comunidade, atentando-se permanentemente à sustentabilidade das ações após a finalização do projeto; visitas domiciliares a famílias indicadas como estando em  situação de intenso sofrimento e construção de Projetos Terapêuticos Singulares/PTSs para os caso mais difíceis; rodas de contação de história e oficinas culturais com intuito de conhecimento e valorização das variadas manifestações culturais locais. Estar na comunidade, com as problemáticas que encontramos a cada imersão, desalojou significativamente os petianos/as. Além da distância percorrida a cada imersão, que algumas vezes impediu uma melhor operacionalização das atividades, pelo tempo disponível reduzido, enfrentamos problemas estruturais. Lage dos Negros tem nos mostrado que esses problemas muitas vezes nos impedirão de oferecer a atenção que acreditamos e desejamos. Entretanto, na condição de profissionais e futuros profissionais de saúde, importa não só buscar vias de garantir atenção de qualidade, no contexto das políticas públicas, como lutar com a comunidade pela melhoria desta, defendendo o acesso à saúde pública de qualidade, como direito de todas e todos. Identificamos uma dificuldade de comunicação dentro da própria comunidade e de articulação entre os setores das políticas públicas. A condição de quilombola marca o lugar, porém, não de um modo positivo para todos/as. Ao longo do projeto, tivemos um estreitamento de relação com referências da Educação, o que nos proporcionou conhecer o Fórum Quilombola, que ocorre anualmente. Isso nos permitiu uma articulação, frágil, porém potente, que deu deu visibilidade a alguns aspectos das dinâmicas sociais/relacionais em Lage, inclusive entre setores das políticas públicas, que estamos tentando melhor compreender. Nosso compromisso é fazer isso junto com a comunidade, no encerramento do projeto, que foi adiado para janeiro/2018. Em avaliações parciais, temos tido o retorno de como o processo tem contribuído para a ampliação das compreensões sobre o cuidado em saúde mental e sua articulação com a melhoria das condições de vida e de comunicação no povoado. O Brasil é um país de dimensões continentais, possuindo um sistema de saúde complexo, com a premissa da universalidade. Refletimos que a população de Lage tem direito a um SUS universal, equânime e integral, mas a Política Nacional de Saúde Integral à População Negra sequer é conhecida lá. Discutir saúde em Lage implica discutir o acesso à água, a emprego, as desigualdades sociais que se revelam na própria comunidade além de outros direitos. Nesse sentido, as imersões têm proporcionado a todas/os uma dimensão da complexidade de pensar saúde, mobilizando nossas próprias compreensões de saúde, de prática em saúde, de acesso a políticas públicas, dos inúmeros desafios que se apresentam à atuação de um profissional de saúde comprometido/a com a leitura da realidade dos lugares em que se insere e de como os diversos fatores socioculturais interferem nos modos de vida dos moradores/as. Diante da inserção em um universo muitas vezes distante dos debates e processos formativos em curso na universidade, temos ampliado a compreensão da real necessidade de reorientação da formação em saúde. A possibilidade de perceber, na prática, que as especificidades de um povo interferem diretamente no modo como dele se cuida, faz com que entendamos que nós, como estudantes e profissionais, precisamos lutar pela redução das desigualdades sociais e, consequentemente, pela ampliação do acesso ao cuidado, contribuindo para pôr em análise barreiras, de qualquer ordem, aos serviços de saúde. Ultrapassando-se a corrente compreensão de que temos que ter algo “pronto” a oferecer, temos investido na sustentação do posicionamento de que “algo” só pode se constituir “pronto” – como pertinente – a partir dos encontros com as pessoas e pelo exercício de compreensão dos diversos modos de vida ali instaurados. Desse modo, reposicionam-se as ênfases nos protocolos, prescrições e procedimentos, valorizando-se as referências já existentes no lugar e outras que podem ser construídas em torno do cuidado. Pela experiência vivida, reforça-se o compromisso de “fazer vazar” tais aprendizados para o âmbito universitário, melando a universidade de vida e povo, dos vários modos de vida e das diversas configurações de ser gente. Pela aproximação com as pessoas/comunidades (com destaque às chamadas “tradicionais”), pode-se questionar a formação “tradicional” não alinhada ao reconhecimento da singularidade dos modos de vida, visando construir e pôr em ato caminhos possíveis para a transformação dos cursos de saúde da Univasf, tendo como horizonte uma formação de caráter ético-político, em que se reposicione o foco hegemônico no tecnicismo vinculado ao saber biomédico, contextualizada no sertão.

 

 


Palavras-chave


PET-Saúde; Formação em Saúde; Comunidade Quilombola