Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2018-01-26
Resumo
A inclusão do tema religiosidade em estudos científicos é acompanhada por críticas e por olhares estigmatizantes, especialmente na psiquiatria e na psicologia, sendo necessário superar tais oposições que, via de regra negligenciam o tema por considerá-lo irrelevante e/ou caracterizam e classificam as experiências religiosas como evidências de psicopatologias. A despeito das controvérsias conceituais sobre religiosidade e espiritualidade, existem evidências cada vez mais crescentes que fenômenos que transitam nesta ordem estão associados à promoção da saúde mental. A experiência religiosa é apresentada como fator de superação de processos de sofrimento, adoecimento, desuso de droga e outras adversidades por vários pesquisadores. Sem diferenciar os termos, os pesquisadores apresentam uma associação positiva entre religiosidade/espiritualidade e saúde mental, inclusive como um fator protetor para o abuso de álcool e drogas, mesmo quando expostos às condições de vulnerabilidade e risco social. Optou-se aqui pelo termo experiência religiosa, pelo fato deste ser utilizado pela Psicologia para referir-se às vivências subjetivas, porém compartilháveis no nível discursivo dos indivíduos e grupos. Entende-se por experiência religiosa uma experiência vivencial e intuitiva de algo ou de alguém que o faz transcender, aparecendo de forma mais ou menos estável durante a vida do indivíduo e de forma mais intensa em momentos cruciais pontuais involuntários e imparciais. Todavia, mais que um conceito, a experiência religiosa remete a um caráter relacional de encontro e processo que geram transcendência: com o outro, consigo mesmo e com o Outro (em termos de relações com Deus, o Transcendente ou com um “Ser Superior”, segundo as variações possíveis). O estudo da experiência religiosa para a psicologia tem como perspectiva descrever e sistematizar o elemento subjetivo do comportamento religioso, suas interações sociais, motivações, pertença, conversão, identidade, formação de atitudes, adesão aos valores, papéis sociais, práticas religiosas, maturidade, mudanças e outros elementos atribuídos a esta na experiência com o Sagrado. Estas são razões suficientes para sustentar a pertinência da temática do fenômeno do uso de drogas em sua relação com a experiência religiosa no que diz respeito ao processo de transformação, superação ou transcendência, ou, ainda, em um termo sistêmico, de autopoiese. Este estudo tem como objetivo compreender como a experiência religiosa é situada na trajetória de um grupo de pessoas que superaram o uso de drogas após a passagem destas por uma comunidade terapêutica. Trata-se de um estudo de abordagem exploratória qualitativa por esta favorecer melhor acesso às narrativas que os sujeitos elaboram, no que diz respeito aos significados e intencionalidade atribuídos aos fenômenos vivenciados individualmente e socialmente, assim como às relações que interagem. O local de estudo foi a Fazenda da Esperança, pelo fato de que desde o início de seu funcionamento, mais de dois mil jovens e adultos passaram por ela. A amostra foi composta por quatro participantes do sexo masculino, que receberam nomes fictícios para a garantia de sigilo e preservação do anonimato, a saber Lucas (38), Luiz (33), Leandro (32) e Leonardo (32), os quais foram escolhidos pelo método de amostra proposital. Os mesmos passaram por uma comunidade terapêutica de base cristã católica (Fazenda da Esperança em Manaus, Amazonas) e se encontravam, no momento do estudo, em condição de desuso de drogas. A coleta de dados deu-se por meio da entrevista semiestruturada sem, contudo, limitar as falas ao roteiro-guia. Os participantes foram entrevistados individualmente. Foi utilizado ainda um diário de campo contendo registros da observação do entrevistador durante o período de imersão na instituição, num período de uma semana como estratégia complementar. A pesquisa seguiu todo o rigor ético após ser aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/UFAM, Parecer 482.521/2013). Nos resultados percebeu-se que em cada um dos participantes, no início da superação, a experiência religiosa foi organizadora de modo singular: uns vivenciando conflitos entre a vontade de Deus, tentando não ceder à sua própria vontade; outros, potencializados pela demanda de encontrar respostas por meio da auto reflexão resultante do encontro consigo mesmo; outros ainda vivenciando esta aproximação religiosa por meio da prática de oração com o suporte de um grupo. Todas as experiências foram relatadas como os levando a transcender o modo com o qual se relacionavam consigo mesmo. "No começo da superação fui aprendendo e fui me autoconhecendo. Fiz um exame de consciência. Aprendi neste tempo a perguntar pra mim mesmo: O que eu fiz? Eu fui útil em que? O que eu fiz para o meu próximo? Eu constitui uma família? Fui quebrando vários paradigmas. Foi assim que eu fiz no começo (Lucas, 38). O movimento de mudança em Lucas articula-se à experiência do contato com Deus que o levou a nova relação consigo a partir de uma reflexão, uma tomada de consciência de si mesmo do seu projeto de vida. Experiências semelhantes à de Lucas foram observadas durante o período de observação na instituição, na prática intitulada “Palavra de Vida”, que era realizada todos os dias em cada grupo na instituição. Na fala de Luiz percebe-se o conflito resultante do desejo de sair daquele espaço e usar drogas e da experiência narrada de dedicação à vontade de Deus: "Eu procurei no início dedicar a fazer a vontade de Deus. A minha vontade era sair e usar droga. Eu ia para a missa com dedicação e atenção. E me colocava na frente para não me distrair". A consciência do conflito parece fundamental ao fortalecimento da determinação, sem distração, para não perder o foco das atividades religiosas. Por isso procura ficar na frente, “mais próximo de Deus”. O conflito parece ter auxiliado o desencadear de uma relação de entrega e confiança com o Transcendente, com o grupo que proporciona o rito e cria-se um ambiente de encontro com o outro. Durante um dos ritos religiosos, mediado pela presença do sacerdote, Leonardo relata uma experiência religiosa em que questões importantes de sua vida adquirem contornos de cunho espiritual, questões que o mesmo buscou respostas a partir da religiosidade: "No começo eu não acreditava em Deus. Foram acontecendo fatos e perguntas que eu tinha no coração. No momento da missa, quando o padre ia falar, parece que era pra mim. Eram respostas para as perguntas que estavam dentro do meu coração" ". Leandro também relata sua experiência: "Tinha um grupo de cinco que estava há um mês na instituição. Fizemos um propósito de 'depositar nosso descanso', que era depois do nosso almoço. A gente ia para o sacrário rezar até a volta para o trabalho da tarde; isso durante 11 meses". O sentido de 'depósito do descanso' é vinculado à experiência religiosa. A prática que envolve esta ação envolve apoio de grupo e perseverança. O que foi mantido por quase um ano, segundo o participante. Nas narrativas colhidas, é possível perceber a importância atribuída ao componente religioso, o qual se integra às suas experiências, sobretudo relacionais. Ainda que tanto a experiência religiosa quanto o desuso de drogas sejam comumente compreendidas como algo de cunho individualizado, observou-se que ela é simultaneamente pessoal e relacional/interativa. Assim, ao reescreverem um novo capítulo de suas histórias de vida, cada participante da pesquisa nos doou a possibilidade de acreditar ainda mais na vida e na sua capacidade extraordinária de superação proporcionada pela experiência religiosa como realização do encontro humano.