Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA NA SUPERAÇÃO DO USO DE DROGAS
Orlando Gonçalves Barbosa, Joaquim Hudson de Souza Ribeiro, Maria de Nazaré de Souza Ribeiro, Cleisiane Xavier Diniz, Selma Barboza Perdomo, Fernanda Farias de Castro

Última alteração: 2018-01-26

Resumo


A inclusão do tema religiosidade em estudos científicos é acompanhada por críticas e por olhares estigmatizantes, especialmente na psiquiatria e na psicologia, sendo necessário superar tais oposições que, via de regra negligenciam o tema por considerá-lo irrelevante e/ou caracterizam e classificam as experiências religiosas como evidências de psicopatologias. A despeito das controvérsias conceituais sobre religiosidade e espiritualidade, existem evidências cada vez mais crescentes que fenômenos que transitam nesta ordem estão associados à promoção da saúde mental. A experiência religiosa é apresentada como fator de superação de processos de sofrimento, adoecimento, desuso de droga e outras adversidades por vários pesquisadores. Sem diferenciar os termos, os pesquisadores apresentam uma associação positiva entre religiosidade/espiritualidade e saúde mental, inclusive como um fator protetor para o abuso de álcool e drogas, mesmo quando expostos às condições de vulnerabilidade e risco social. Optou-se aqui pelo termo experiência religiosa, pelo fato deste ser utilizado pela Psicologia para referir-se às vivências subjetivas, porém compartilháveis no nível discursivo dos indivíduos e grupos. Entende-se por experiência religiosa uma experiência vivencial e intuitiva de algo ou de alguém que o faz transcender, aparecendo de forma mais ou menos estável durante a vida do indivíduo e de forma mais intensa em momentos cruciais pontuais involuntários e imparciais. Todavia, mais que um conceito, a experiência religiosa remete a um caráter relacional de encontro e processo que geram transcendência: com o outro, consigo mesmo e com o Outro (em termos de relações com Deus, o Transcendente ou com um “Ser Superior”, segundo as variações possíveis). O estudo da experiência religiosa para a psicologia tem como perspectiva descrever e sistematizar o elemento subjetivo do comportamento religioso, suas interações sociais, motivações, pertença, conversão, identidade, formação de atitudes, adesão aos valores, papéis sociais, práticas religiosas, maturidade, mudanças e outros elementos atribuídos a esta na experiência com o Sagrado. Estas são razões suficientes para sustentar a pertinência da temática do fenômeno do uso de drogas em sua relação com a experiência religiosa no que diz respeito ao processo de transformação, superação ou transcendência, ou, ainda, em um termo sistêmico, de autopoiese. Este estudo tem como objetivo compreender como a experiência religiosa é situada na trajetória de um grupo de pessoas que superaram o uso de drogas após a passagem destas por uma comunidade terapêutica. Trata-se de um estudo de abordagem exploratória qualitativa por esta favorecer melhor acesso às narrativas que os sujeitos elaboram, no que diz respeito aos significados e intencionalidade atribuídos aos fenômenos vivenciados individualmente e socialmente, assim como às relações que interagem. O local de estudo foi a Fazenda da Esperança, pelo fato de que desde o início de seu funcionamento, mais de dois mil jovens e adultos passaram por ela. A amostra foi composta por quatro participantes do sexo masculino, que receberam  nomes fictícios para a garantia de sigilo e preservação do anonimato, a saber Lucas (38), Luiz (33), Leandro (32) e Leonardo (32), os quais foram escolhidos pelo método de amostra proposital. Os mesmos passaram por uma comunidade terapêutica de base cristã católica (Fazenda da Esperança em Manaus, Amazonas) e se encontravam, no momento do estudo, em condição de desuso de drogas. A coleta de dados deu-se por meio da entrevista semiestruturada sem, contudo, limitar as falas ao roteiro-guia. Os participantes foram entrevistados individualmente. Foi utilizado ainda um diário de campo contendo registros da observação do entrevistador durante o período de imersão na instituição, num período de uma semana como estratégia complementar.  A pesquisa seguiu todo o rigor ético após ser aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/UFAM, Parecer 482.521/2013). Nos resultados percebeu-se que em cada um dos participantes, no início da superação, a experiência religiosa foi organizadora de modo singular: uns vivenciando conflitos entre a vontade de Deus, tentando não ceder à sua própria vontade; outros, potencializados pela demanda de encontrar respostas por meio da auto reflexão resultante do encontro consigo mesmo; outros ainda vivenciando esta aproximação religiosa por meio da prática de oração com o suporte de um grupo. Todas as experiências foram relatadas como os levando a transcender o modo com o qual se relacionavam consigo mesmo. "No começo da superação fui aprendendo e fui me autoconhecendo. Fiz um exame de consciência. Aprendi neste tempo a perguntar pra mim mesmo: O que eu fiz? Eu fui útil em que? O que eu fiz para o meu próximo? Eu constitui uma família? Fui quebrando vários paradigmas. Foi assim que eu fiz no começo (Lucas, 38). O movimento de mudança em Lucas articula-se à experiência do contato com Deus que o levou a nova relação consigo a partir de uma reflexão, uma tomada de consciência de si mesmo do seu projeto de vida. Experiências semelhantes à de Lucas foram observadas durante o período de observação na instituição, na prática intitulada “Palavra de Vida”, que era realizada todos os dias em cada grupo na instituição. Na fala de Luiz percebe-se o conflito resultante do desejo de sair daquele espaço e usar drogas e da experiência narrada de dedicação à vontade de Deus: "Eu procurei no início dedicar a fazer a vontade de Deus. A minha vontade era sair e usar droga. Eu ia para a missa com dedicação e atenção. E me colocava na frente para não me distrair". A consciência do conflito parece fundamental ao fortalecimento da determinação, sem distração, para não perder o foco das atividades religiosas. Por isso procura ficar na frente, “mais próximo de Deus”. O conflito parece ter auxiliado o desencadear de uma relação de entrega e confiança com o Transcendente, com o grupo que proporciona o rito e cria-se um ambiente de encontro com o outro. Durante um dos ritos religiosos, mediado pela presença do sacerdote, Leonardo relata uma experiência religiosa em que questões importantes de sua vida adquirem contornos de cunho espiritual, questões que o mesmo buscou respostas a partir da religiosidade: "No começo eu não acreditava em Deus. Foram acontecendo fatos e perguntas que eu tinha no coração. No momento da missa, quando o padre ia falar, parece que era pra mim. Eram respostas para as perguntas que estavam dentro do meu coração" ". Leandro também relata sua experiência: "Tinha um grupo de cinco que estava há um mês na instituição. Fizemos um propósito de 'depositar nosso descanso', que era depois do nosso almoço. A gente ia para o sacrário rezar até a volta para o trabalho da tarde; isso durante 11 meses". O sentido de 'depósito do descanso' é vinculado à experiência religiosa. A prática que envolve esta ação envolve apoio de grupo e perseverança. O que foi mantido por quase um ano, segundo o participante. Nas narrativas colhidas, é possível perceber a importância atribuída ao componente religioso, o qual se integra às suas experiências, sobretudo relacionais. Ainda que tanto a experiência religiosa quanto o desuso de drogas sejam comumente compreendidas como algo de cunho individualizado, observou-se que ela é simultaneamente pessoal e relacional/interativa. Assim, ao reescreverem um novo capítulo de suas histórias de vida, cada participante da pesquisa nos doou a possibilidade de acreditar ainda mais na vida e na sua capacidade extraordinária de superação proporcionada pela experiência religiosa como realização do encontro humano.


Palavras-chave


Drogas; Religiosidade; Espiritualidade; Dependência química