Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Participação popular nas decisões cotidianas de um serviço de saúde mental
Gustavo Emanuel Cerqueira Menezes Junior

Última alteração: 2018-01-15

Resumo


A Reforma Psiquiátrica no Brasil, marcada pela promulgação da Lei 10.216 em 2001, impulsionou o processo de criação de uma rede de serviços substitutivos às instituições manicomiais de tratamento psiquiátrico, com progressiva redução dos leitos de internação, estabelecendo os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como dispositivos que assumem papel estratégico na organização da Rede de Atenção Psicossocial.

No entanto, a existência dos serviços substitutivos não significa automaticamente uma adesão aos princípios, diretrizes e novos paradigmas propostos pelo movimento da Reforma Psiquiátrica. Além disso, há de se considerar que a implantação de um novo modelo de atenção implica não apenas em definição de novas diretrizes políticas e na reorganização dos serviços de saúde, a concretude de um novo modelo está intrinsecamente ligada às mudanças das práticas profissionais e dos elementos culturais.

Observa-se que esta transição paradigmática implica em disponibilidade técnica, ética e política dos profissionais para a construção de outros propósitos, outras formas de organização dos serviços, das modalidades de gestão, dos processos de trabalho, das práticas profissionais, onde haja estabelecimento de relações que incluem usuários e usuárias como sujeitos, e não o observem como meros objetos de intervenção, projetando composições “mais abertas à produção negociada do viver em sociedade, propiciadoras da construção de sujeitos autônomos”.

Ao pautar a garantia da participação das pessoas que utilizam os serviços de saúde mental nos espaços de decisão, é primordial afirmar a necessidade de forjar espaços que possibilitem a construção de autonomia. É fundamental a inclusão destas pessoas no cotidiano institucional no intuito de oferecer um ambiente para que possam construir conjuntamente as diretrizes administrativas do espaço que utilizam e do tratamento que recebem. Essa estratégia possibilita horizontalizar as relações de poder presentes na relação terapêutica.

No que diz respeito à participação dos usuários nas decisões do cotidiano dos serviços de saúde mental, o relatório da IV CNSM-I indica que “é necessário adotar um modelo de saúde humanizado que considere o cuidado integral e a ativa participação de todos, principalmente a dos próprios usuários, na elaboração e condução dos seus projetos terapêuticos, fortalecendo o 'protagonismo social', no sentido de desenvolver autonomia e autodeterminação”.

O exercício da participação popular é uma das importantes estratégias de empoderamento dos usuários dos serviços de saúde mental abrindo campo para o protagonismo social e a defesa de direitos. O empoderamento aqui é entendido como um processo de fortalecimento do poder e autonomia pessoal e coletiva de indivíduos e grupos sociais nas relações interpessoais e institucionais, principalmente daqueles submetidos a relações de opressão, dominação e discriminação social.

A construção de processos terapêuticos que possibilitem a autonomia dos sujeitos que usam os serviços de saúde mental, no sentido de construção conjunta das decisões que devem ser tomadas no cotidiano dos mesmos fortalece os princípios da participação popular no SUS e abre a possibilidade de uma gestão ampliada e compartilhada que produz mudanças nas organizações de saúde.

Neste estudo, de delineamento qualitativo, com caráter exploratório-descritivo, toma-se como referencia a garantia de espaços de participação popular no cotidiano de um serviço de saúde mental, sendo um recorte do projeto “Diagnóstico situacional da atenção à Saúde Mental na Bahia: repensando as práticas”. Os dados foram coletados entre os meses de novembro de 2013 e janeiro de 2014, sendo realizado um total de 17 entrevistas a usuários, familiares e profissionais de um dado serviço de saúde mental do estado da Bahia.

Para realizar os procedimentos de aplicação dos instrumentos de coleta de dados foi formado um Grupo de Trabalho composto por distintos representantes (usuários, profissionais, familiares e gestores) para discutir as ações referentes ao projeto e seus desdobramentos, e formada uma Comissão de Visitas, de composição também diversificada, de forma a garantir a representatividade de diferentes segmentos da sociedade.

A partir da sistematização dos dados obtidos através de seleção por amostragem intencional das entrevistas realizadas com 06 profissionais, considerando o aspecto da garantia da participação dos usuários do serviço de saúde mental em processos autonomizantes, emergiram as seguintes categorias de análise: espaços de participação popular e empoderamento dos usuários do serviço.

A participação popular, entendida sob a perspectiva da afirmação das singularidades possíveis, que se forja a partir dos encontros, das dificuldades encontradas para a condução de problemas do serviço, de conflitos estabelecidos por conta das divergências de opiniões e das demais discussões que surgem no cotidiano do serviço, tanto nos espaços instituídos formais quanto nos encontros que compõem o dia a dia da vida de um usuário ou usuária da saúde mental.

As transformações nos serviços de saúde mental precisam ser cotidianas, sendo necessária a construção de práticas institucionais que não reproduzam as observadas nas instituições manicomiais. Neste sentido a participação dos usuários nas decisões que envolvam o andamento do serviço é uma ferramenta que potencializa as rupturas institucionais importantes para uma clínica que se aproxime mais da realidade dos sujeitos que utilizam o serviço e do território onde este serviço está inserido.

As falas revelaram que, apesar de possuir elementos que apontam para uma prática próxima do modelo de atenção psicossocial com vistas à garantia de espaços formais de participação popular, o referido serviço de saúde mental ainda apresenta elementos que se contradizem. A inclusão dos usuários nas decisões cotidianas do serviço não foi percebida, apesar da existência de espaços formais de denúncia e de uma assembleia mensal.

No campo da Saúde Mental, o exercício participativo nos processos de controle social esbarra no desafio de superar o estigma social e a tradição da tutela que incidem sobre os sujeitos em sofrimento mental. O estigma e a tutela contribuem para o não empoderamento e o não reconhecimento destes sujeitos enquanto cidadãos e atores do processo participativo e do controle social.

Os serviços de saúde mental possuem uma singularidade no seu funcionamento que é a existência de assembleias que devem discutir o cotidiano do serviço. No entanto, não basta instituir espaços de escuta, é importante a existência de condições concretas e métodos de empoderamento dos sujeitos.

Há referência ao espaço da assembleia, onde a participação do usuário é estimulada e ele pode interferir nas decisões do CAPS. Revela-se uma incipiente cultura institucional de participação e decisão do usuário. Nesta direção também aparece no discurso dos sujeitos a primazia do saber técnico, o que os faz capaz de decidir o que é melhor para o usuário.

A equipe reconhece que apesar da existência de espaço para fala, colocações, reclamações – individualmente ou em assembleias, não há uma priorização desse espaço como espaço de decisões acerca do cotidiano do serviço, mas sim como uma das atividades terapêuticas.

Conclui-se que os espaços de participação e discussões não devem se restringir à assembleia, é importante que este processo transversalize todas as atividades do serviço, desde as oficinas de geração de renda aos grupos terapêuticos, destacando-se, no entanto a importância da assembleia como espaço de deliberação, onde todos os sujeitos envolvidos (trabalhadores, gestores, usuários e familiares) tenham possibilidade de participação. A reorientação das práticas representa uma importante ruptura paradigmática, sendo necessário o investimento em dimensões praxiológicas que dizem respeito à construção da cidadania e transformação das relações nos diversos âmbitos da vida das pessoas que usam o serviço.


Palavras-chave


Saúde Mental; Participação Popular e Empoderamento