Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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As Agentes Comunitárias de Saúde na trajetória entre “trabalhar fora” e dentro da comunidade
Anna Violeta Ribeiro Durão

Última alteração: 2018-01-23

Resumo


Esse trabalho traz algumas questões sobre a inserção das Agentes comunitárias de Saúde no município do Rio de Janeiro, no momento em que o Programa Saúde da Família (PSF) se expande nos grandes centros urbanos (1999). Constata-se um direcionamento da política em contratar mulheres da mesma classe do entorno para solucionar os problemas da população.  Em um campo mais amplo, essa perspectiva relaciona-se com políticas fomentadas por agências internacionais como forma de alívio à pobreza. Assim, desde o início do Programa no Nordeste (1990) um dos requisitos para a contratação dessas trabalhadoras era, e ainda é, que elas fossem moradoras das áreas aonde trabalham. Em trabalho anterior, foi possível analisar como no início da constituição da profissão havia uma ideologia de gênero que se imbricava com a vida e o trabalho dessas mulheres, tendo um forte enraizamento com o local. No município do R.J, a relação com a comunidade foi construída e se construiu no e pelo trabalho.  Nesse sentido, quer-se entender o porquê, embora também participassem de atividades na localidade, essa inserção não era percebida de forma orgânica.

Para um primeiro aprofundamento sobre essa questão, utilizou-se a literatura mais ampla sobre o tema e, principalmente, as entrevistas aprofundadas realizadas com a turma do Curso Técnico de Agentes Comunitários de (2011-2012) realizado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio em parceria com a Prefeitura do Rio de Janeiro. As agentes entrevistadas foram selecionadas a partir de um questionário fechado com os dados socioeconômicos respondidos por 160 ACS que participaram do curso. Fundamenta-se a análise no pensamento de E. P. Thompson, principalmente, no seu conceito de experiência na busca de entender o protagonismo dessas trabalhadoras na consolidação do seu trabalho.

O conceito de experiência para o historiador britânico está associado, a um só tempo, a uma experiência do sujeito e a uma experiência coletiva, é, portanto, um conceito de junção entre a consciência e a realidade concreta que os homens e as mulheres, em um dado período histórico, vivenciam suas múltiplas determinações. Nesse sentido, o fazer-se mulher engloba várias experiências que formam um amálgama, no qual elas se constituem e são constituídas como mulheres trabalhadoras. Nessa relação, sua experiência de trabalho e vida é permeada por uma visão do feminino culturalmente diferenciada do masculino e marcada por sua condição de classe.

Constatou-se que na implantação do PACS no Nordeste, as experiências tecidas em várias esferas da vida formaram elos intercessores, no qual o trabalho do cuidado na família se estendeu para o trabalho voluntário realizado junto as Pastorais da Criança e desse para o trabalho remunerado na comunidade. Nesse contexto, a experiência comum vivenciada pelas ACS no início da constituição da sua profissão era percebida como uma experiência herdada (Thompson) na medida em que as normas, os valores e as atitudes que conformaram o seu ser social estavam de tal forma articulados com o seu corpo biológico que eram percebidos como determinados, no sentido estreito do termo.

No município do R.J. essa passagem para o trabalho comunitário, embora também traga uma construção herdada do feminino, ganha novos significados na própria experiência de trabalho. Nota-se que na visão das ACS do Rio de Janeiro “o ser da comunidade” não é percebido como inerente a própria pessoa, mas foi se constituindo no processo. Embora participassem da Igreja, tivessem filhos na creche e se inserirem em projetos locais, essas experiências ainda que fossem relativas espacialmente à comunidade não possibilitavam o comprometimento com o todo.

Assim, a partir da categoria empírica “trabalhar fora” e dentro da comunidade, procurou-se entender, como a partir de uma experiência construída no feminino, se estabeleceu e foi estabelecido o trabalho comunitário nos grandes centros urbanos. Coloca-se em destaque a participação dessas trabalhadoras na trajetória de trabalho anterior, na comunidade e o seu imbricamento com o trabalho doméstico.

Fez-se notar, nos depoimentos, que a noção de comunidade também trazia consigo uma visão de espaço de violência, na qual o “trabalhar fora” era uma tentativa de sair desses territórios. Como destacam vários autores, construiu-se uma representação social da favela como um espaço oposto à cidade e a partir das décadas de 1980-1990 essa clivagem se dá em torno da violência.  Assim, a experiência em “trabalhar fora” era expressivo do anseio a uma vida mais digna não delimitada nem pelo gênero, nem pela condição de classe.

No que tange uma perspectiva de gênero a imagem da mulher que trabalha fora é representativa da luta feminina por maior igualdade no mercado de trabalho, pois se contrapõe a uma ideologia que confinava a autonomia das mulheres ao espaço privado que era simbolizada pelas imagens da “rainha do lar ” e “dona-de-casa”. Nesse sentido, na trajetória de trabalho das agentes, ao mesmo tempo em que buscaram garantir a sobrevivência através do assalariamento, desejavam romper com o confinamento que o trabalho doméstico implicava, ou para ganhar maior autonomia econômica, ou para romper com as relações de poder no âmbito familiar

Depois de uma longa trajetória de trabalho ao voltar para a comunidade, verifica-se que as ACS se inserem em trabalhos que são compreendidos como extensão das funções da mulher no espaço privado e como tal, mais precarizado. Vão trabalhar na creche comunitária, nos projetos desenvolvidos no local e acionam habilidades construídas no âmbito doméstico como forma de complementação de renda. Estar desempregada facilita o conhecimento dos projetos que passaram a ser fomentados tanto pelo Estado, quanto pelas ONGs. Tendo que manter a sobrevivência as mulheres aproveitam os cursos promovidos na comunidade e trabalham sazonalmente nos projetos desenvolvidos no local. No entanto, devido ao seu caráter precário e a sua curta duração se assemelham aos trabalhos intermitentes vividos anteriormente, não possibilitando um engajamento maior que desse sentido ao que faziam.

Verificou-se pelo menos duas visões, onde se delimita uma fronteira entre o trabalhar dentro e fora da comunidade que estão relacionados a atribuição de valores normas e símbolos que foram construídos com significados diferentes para os homens e mulheres que equivalem ao público e ao privado. O público sendo visto como o espaço do trabalho, da política e da economia, enquanto o privado como lugar da casa, da família, das relações afetivas etc. Nessa clivagem o “trabalhar fora” ganha um duplo significado, de um lado é percebido como uma possibilidade de romper com as amarras que cerceiam o trabalho doméstico e de entrada na esfera pública e nesse sentido a comunidade é vista como uma extensão da vida doméstica. De outro, a percepção da comunidade como oposta à cidade que ganha concretude, principalmente, pela vulnerabilidade gerada pela violência que prospera nestes locais, na exata medida em que se cerceiam os direitos a uma vida mais digna.  Nesse sentido, a casa configura-se como o local do íntimo, da privacidade, em um ambiente que é marcado por uma vida de privações.

Acredita-se que devido as ACS terem se constituídos no bojo da Reforma Sanitária Brasileira, a sua inserção no Programa de Saúde da Família permitiu ir de encontro, ainda que com muita dificuldade, a essa rotatividade entre projetos, construindo através do trabalho laços mais sólidos com a comunidade e uma perspectiva de luta para consolidação da profissão.


Palavras-chave


Gênero; trabalho comunitário; Agentes Comunitárias de Saúde