Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Resistência e Invenção: gestão viva em ato do cuidado e construção de cidadania de mulheres vítimas de violências e vulnerabilidades
Márcio Mariath Belloc, Károl Veiga Cabral, Christina de Salles Junchem

Última alteração: 2018-01-26

Resumo


O presente trabalho objetiva refletir e discutir a experiência de gestão do Projeto Redes, vinculado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no território de Porto Alegre, no ano de 2017. Em edição anterior, tal Projeto havia atuado na capital gaúcha na articulação das redes intersetoriais, com relação ao cuidado das pessoas com problemas decorrentes do uso de drogas. Na edição da qual trata este trabalho, manteve-se o recorte anterior, mas agora com a especificidade das mulheres vítimas de violências e vulnerabilidades. Outra mudança importante foi a ampliação da forma de atuação, pois além da articulação das redes intersetoriais de cuidado e proteção a essas mulheres, também as acompanhamos em seus itinerários de atenção e construção de cidadania. Além da mudança no recorte de atuação, os desafios de construção, pactuação e execução do projeto deviam levar em conta outras importantes variáveis, diretamente relacionadas ao contexto de retrocesso nas políticas públicas no pais, no estado e no município em questão.

Como exemplos deste contexto, poderíamos brevemente apontar, no nível nacional, a arquitetura do golpe parlamentar e judiciário de 2016, que rapidamente aprova a ementa constitucional que congela o que já era um subfinanciamento na área da saúde e da educação; que aprova uma reforma trabalhista que nos aproxima do Brasil anterior ao Estado Novo; que desinveste em vários projetos estratégicos na área da saúde como o programa Mais Médicos, e direciona investimentos para a saúde suplementar, aproximando a política atual a anterior à criação do extinto Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social, ou seja, pré Sistema Único de Saúde; entre outros vários desinvestimentos e retrocessos. No nível estadual, que antes do golpe já desinvestia em todas as políticas sociais, subfinanciando a saúde, a educação e a assistência; que estingue pastas, financiamentos e ações de direitos humanos e de política para as mulheres; que no campo da saúde mental investe no fortalecimento do parque manicomial (hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas); entre outros vários desinvestimentos e retrocessos que são potencializados no embalo do golpe de 2016. E no nível municipal, que como exemplo podemos citar: uma gestão que já assume precarizando ainda mais a assistência social, com vários serviços que perdem o mínimo de trabalhadores necessários; com discursos e ações contraditórias entre gestores das áreas sociais, que vão desde o higienismo à lógica da promoção; com a verticalização da gestão e extinção de espaços de cogestão e participação cidadã.

Outro desafio importante era construir o Projeto e estabelecer as ações a partir de um contexto de baixa institucionalidade, não havendo sede da Fiocruz em Porto Alegre, e sendo o próprio Redes uma criação da gestão federal anterior, a partir da Secretaria Nacional sobre Drogas do Ministério da Justiça, que, na época, convenia a Fiocruz para a execução do mesmo. Um Projeto que, baseado no cuidado em liberdade, na redução de danos e na construção participativa e transversal da cidadania, estava claramente na contramão das políticas que se começavam a implementar em todas as pastas.

Não obstante, em meio a essa produção de profundos retrocessos, nossa alternativa foi a de tomar a baixa institucionalidade como fortaleza e criar uma forma de gestão viva em ato fundamentada na resistência e invenção. Resistência pelo contexto extremamente adverso à  constituição de um trabalho fundamentado em princípios e diretrizes que estavam sendo ignoradas e atacadas, justamente na invenção de caminhos possíveis, construídos coletivamente entre a equipe local do Projeto, o movimento social organizado, os trabalhadores das redes intersetoriais, as mulheres vítimas de violências e vulnerabilidades, e mesmo alguns gestores que ainda defendiam o cuidado em liberdade, a redução de danos e a participação cidadã.

A equipe local do Projeto Redes era composta por um coordenador de território, três supervisorxs e cinco articuladorxs sociais que, trabalhando nessas condições, desenvolveram coletivamente estratégias de ação. Estratégias tais que abrangeram desde a composição dos territórios de atuação, até as singulares abordagens para cada território, de acordo com suas necessidades e potencialidades específicas, bem como as possibilidades de construção das ações por parte de cada membro dessa equipe. Estratégias também sob a égide da resistência e invenção. Resistência na produção e articulação de coletividade entre atores da saúde, da assistência social, dos direitos humanos, do legislativo e do judiciário – entendendo como atores todos os envolvidos: ativistas sociais, usuários, trabalhadores e gestores. Invenção desde a criação de cada forma de abordagem, de acordo com cada território, até a própria forma de organização da equipe do Projeto, produzindo e reinventando lugares e formas de atuação de acordo com as situações enfrentadas, por exemplo: experiências de cogestão no estabelecimento de territórios geográficos e temáticos de atuação; de supervisão em ato de cuidado e de articulação; até mesmo de uma espécie de apoio matricial dialético, que se estabelecia tanto da coordenação e supervisão em relação aos territórios de atuação, quanto das próprias usuárias e trabalhadores dos territórios em relação às ações desenvolvidas, bem como do trabalho vivo em ato em relação à coordenação do Projeto.

Como uma forma de organização e de planejamento estratégico, a gestão desse processo singular se constituiu a partir de cinco dimensões: pactuação inicial, construção de possibilidades, apoio matricial, manutenção do espaço e continuidade das ações em território como fim do Projeto. Dimensões essas pensadas de forma dialética e dinâmica, ou seja, como um movimento em espiral que pode e deve revisitar e reconduzir dimensões. Dimensões que precisaram produzir dobras sobre si e sobre a experiência, fazendo aparecer o lugar da singularidade, da pluralidade. Uma gestão viva em ato como exercício de criação das possibilidades de atuação dos articuladores sociais e, principalmente, de produção de vida e cidadania para as mulheres acompanhadas, bem como de trabalho vivo para os profissionais e ativistas de todas as redes acessadas, formais e informais. Um trabalho de produção de condições de trabalho, operando na dobra dessa característica de baixa institucionalidade. Gestão como criação de condições, a partir das dimensões expostas acima, mas que também, pelo mesmo motivo, pôde se colocar como alteridade para as redes intersetoriais, formais e informais, do município. Foram meses intensos, de muito trabalho, de muito aprendizado ao participar de histórias marcadas pela exclusão, violências estatais e pessoais, vulnerabilidades etc., mas também de muita produção de vida, de coletividade e parcerias, de construção de outros futuros possíveis.


Palavras-chave


Gestão; gênero; território; cuidado; cidadania;