Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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(Re)existências – modos de gestão e a produção do cuidado em saúde mental – Hoje já é amanhã?
Mírian Ribeiro Conceição, Patricia Carvalho Silva, Patricia Carvalho Silva, Patricia Carvalho Silva

Última alteração: 2018-01-25

Resumo


A Reforma Psiquiátrica no Brasil constitui-se na efervescência de discussões políticas quanto aos direitos dos cidadãos, uma conjuntura reconhecida como ‘transição democrática’, que só foi possível com o enfraquecimento do autoritarismo e seu poder soberano. Advinda de um contexto de intercâmbio, com discussões como as produzidas na Itália por Basaglia, tem em sua cerne a garantia dos direitos e modelo de cuidado em que o protagonismo dos usuários era centralidade das ações.1

Pari passu, o movimento de Reforma Sanitária acontece em levante de movimentos sociais, de trabalhadores, de estudantes, docentes, entre outros, que iniciam debates sobre acesso à saúde e a defesa dos direitos coletivos.1 Neste processo, após a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) as diferentes experiências ocorreram durante toda a década de 90, enfrentou diversos desafios na tentativa de produção de uma mudança de paradigma. Como resultado tem-se as discussões sobre a produção de um cuidado humanizado em temática da XI Conferência de Saúde, em 2002 - “Acesso, qualidade e humanização da atenção à saúde com controle social”.  Desta discussão coletiva várias iniciativas foram implementadas dentre elas, em 2003, a Política Nacional de Humanização (PNH) apresenta como foro das principais discussões as práticas de gestão e de atenção na intenção de melhora da qualificação da saúde.2

Em proposição de processos de criação em dimensões ética, estética e política, ou seja, ética ao que se refere a mudança de atitudes, de todos os envolvidos seja quais forem as esferas de competência, estética por se tratar do processo de produção/criação da saúde e de subjetividades autônomas e protagonistas; política, porque diz respeito à organização social e institucional das práticas de atenção e gestão na rede do SUS.3

Dentre suas diretrizes a PNH apresenta a cogestão como método de trabalho de modo a operar coletivo e cogestivo de produção de saúde e de implicação dos sujeitos envolvidos. Como garantia da democracia da gestão em saúde os processos cogestionários apresentam-se como um modo de administrar que inclui o pensar e o fazer coletivo, sendo, portanto, uma diretriz ética e política.4

Como localização destas diferentes formas de operar, temos dispositivos importantes de organização da Cogestão, nos quais apostam em espaços que na ordem subjetiva devem confrontar as relações de poder existentes nos encontros produzidas no cotidiano do trabalho. Neste aspecto, segundo Foucault (1997), há um falso entendimento de poder como um lugar instituído, sendo as relações de poder nesta lógica pertencente ao tolhimento da tomada de decisão, ou manipular as massas. No entendimento real do poder, as relações dar-se-iam pela troca do exercício de liberdade.5 Aqui se encontra um importante ponto da Cogestão, pois as tomadas de decisão são importantes na responsabilização de trabalhadores, gestores e usuários. Portanto, o que se deveria exercer enquanto gestão compartilhada é o exercício da liberdade para a construção coletiva do SUS de qualidade. É neste contexto é que o presente relato de experiência se insere.

Em intenso cenário de retrocesso quanto às condições de direito e o acesso à saúde, bem como a produção do cuidado em liberdade, o lugar da gestão, ao que tange a modos de operar em cogestão tem em sua dimensão ética-estética-política movimento de resistência e reiterar a defesa da vida. Criar (re)existências de trabalhadores, usuários e gestores foi centralidade do trabalho desenvolvido durante um ano e meio na gestão do qual estávamos inseridas - enquanto Gestora local de um CAPS Adulto III e na Coordenação da Linha de Cuidado em Saúde Mental na cidade de São Paulo, ambos sobre o gerenciamento de uma mesma Organização de Social de Saúde (OSS).

Resistência vem do latim resistentia, de resistere, “ficar firme, aguentar”, formado por RE-, “para trás, contra”, mais sistere, “ficar firme, manter a posição”.6 Deste modo, manter-se em posição firme de defesa da vida e na produção de cuidado em liberdade requer a criação de um corpo coerente e coeso em que a práxis possa exprimir os valores e ações necessárias à estes e que perpassem os diferentes âmbitos a qual se implica. Neste sentido, a construção de modos de cogestão que fosse transversal tanto na gestão dos serviços quanto na coordenação da linha de saúde mental criou terreno para esta experiência.

A constituição de espaços em que os coletivos pudessem exercer sua liberdade, que não partissem de uma lógica taylorista no qual o primado do produtivismo fosse ponto primordial do processo, tanto ao que tange os contratos de gestão, como na lógica gerencial impregnada nos gestores e trabalhadores, sendo, portanto necessário romper com este ideário vertical de construção do processo de trabalho.

Deste modo, diferentes dispositivos foram utilizados como estratégias de cogestão - reunião de equipe, assembleias, educação permanente, colegiados de gestão nos serviços, colegiado de gestão entre gerentes de serviço, apoio institucional, coordenação e administração direta, entre outros. Nos valemos do conceito de Deleuze, que nos apresenta a multiplicidade de um dispositivo, em que um mesmo plano opera linhas - visibilidade, enunciação, forças e subjetivação -  permitindo assim, aos coletivos tornar visível e dizível as diferentes relações de força presentes no campo e só a partir disto poder criar linhas de fugas como construção de novos modos de atuação.7

A cerne do movimento de resistência deste processo encontrava como objeto principal de implicação a atividade clínica, ou seja, a produção de cuidado em saúde mental. Para tal, a gestão da clínica como práxis cotidiana requeria não apenas uma capacidade individual e coletiva de apropriação de um saber tecnicista, mas principalmente a construção do comum e das produções subjetivas de cada ator deste espaço micropolítico.8

O resistir/(re)existir desta experiência possui dois pontos: inverter a lógica produtivista, e assim construir espaços de significação do cuidado para que estes pudessem ser efetivos espaços de construção coparticipava e romper com a lógica de que cuidar não é tratar, cuidar é caminhar junto, construir possibilidades de ampliação da vida, bem como fazer gestão não é gerenciar, mas sim gestar juntos espaços de construção de um processo de trabalho que todos caibam. Tais práticas de gestão, tentaram alcançar de modo conjunto, o que Foucault (1997) fala de uma visão particular de liberdade como a capacidade de ser algo diferente do que você é, de transformar quem você é, de recriar a si de uma forma contínua. Ou seja, construir espaços que a clínica era posta em constante discussão e o desmantelamento desta por lógicas que vêm cada vez mais implicadas com os mecanismos do capital (produção, "cura", números, controle da conduta), e assim a construção de espaços de resistência, de práticas de liberdade.

A defender a vida e reconhecer um outro singular, e com ele produzir sentidos de vida é o que, no âmbito da micropolítica, tem maior potência de resistir,  e, enquanto ao modo como nos sentimos diante retrocesso compartilhamos a mesma estética de Miguilim, personagem de Campo Geral de Guimarães Rosa: … “Ao vago, dava a mesma idéia de uma vez, em que, muito pequeno, tinha dormido de dia, fora de seu costume – e quando acordou, sentiu o existir do mundo em hora estranha, e perguntou assustado: – ‘Uai, Mãe, hoje já é amanhã?!’ ”.


Palavras-chave


Gestão em Saúde, Saúde Mental, Reforma Sanitária