Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2018-01-25
Resumo
O presente trabalho pretende apresentar a experiência do processo de se inventar residentes e trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Estratégia Saúde da Família (ESF) a partir de uma Residência Multiprofissional em Saúde da Família (RMSF) na cidade de Sobral-CE.
A experiência versa sobre o primeiro ano como residentes e trabalhadores. E em função das multiplicidades de discussões que podem se desenvolver, escolhemos nesse trabalho compartilhar recortes dos movimentos de estranhamento, encantos, encontros e (re)invenção que a equipe multiprofissional da RMSF, composta por enfermeiro, assistente social, nutricionista, educadora física, terapeuta ocupacional, dentista, fisioterapeuta e psicóloga, vem vivenciando nesse processo nos territórios de abrangência da ESF.
Para tanto, iniciamos acerca da entrega que o encontro de se inventar residente convida. Encontro que se deu a partir do processo de territorialização em saúde, estratégia em que as equipes de referência e multiprofissional entram em contato com o território em suas múltiplas dimensões, para além da dimensão geográfica. Processo atravessado pelo encanto das descobertas e do desejo de conhecer fincado nos olhos que nem as amendoeiras nas portas das calçadas das ruas no território. O encanto insistente, cerzindo os passos, se materializando no movimento dos corpos, na tentativa se cartografar pelo adentar das ruas. Encanto pela atenção sendo roubada a cada rosto sob o descanso da manhã nas calçadas. Na audição estimulada pelas músicas, conversas e risos. No toque dos olhares se buscando em cada encontro com os moradores do território. Na ânsia precisada em mudar o eixo do corpo para escutar, com o olhar curioso, os gritos silenciosos das histórias respirando em cada esquina, nos espaços não vazios sendo preenchidos pelas histórias a espera de serem compartilhadas.
No cotidiano do trabalho na ESF, o ser residente se inventa a partir de um corpo sensível, em que o aprendizado e o trabalho se dão no contato com o território, as pessoas, os trabalhadores, os saberes e práticas de cuidado. Em que tudo pulsa ao se intensificar em cor e cintilância, principalmente quando o coração segue com fome de aprendizados e transformação. Pois, nessa experiência de se inventar residente aceitamos o convite a ser porosidade às vidas e aos encontros que chegam, pedindo honestidade e inteireza nos sentires.
Aprendizado que se inicia pela construção de vínculos com a equipe de referência, com os usuários e com o território. Profissionais e usuários múltiplos em suas formas de olhar, cuidar e produzir saúde. Olhares de surpresa, entusiasmo, cansaço, descrença, fé, força e luta. Olhares de rostos marcados por processos de trabalho atravessados por uma realidade complexa e desafiadora, exigindo de cada um mais que técnicas mecanizadas e especializadas, posto que exigem acolhimento e estratégias de enfrentamento às necessidades vivenciadas pelas pessoas, famílias e coletivos no território. Rostos interrogativos quanto às possibilidades dos processos mudarem.
Inventar-se residentes vem se constituindo enquanto trabalho engendrado por desejos de construção do SUS e da ESF que atendam e acolham as necessidades das pessoas. Desejos por construção de melhorias ou por processos de compartilhamento dos pesos das existências que chegam até a ESF. Pois são tantos fluxos, paradigmas e contradições desenhando as existências no território, em que a vida se mostra como luta diária, minuto após minuto em realidades agenciadas por vulnerabilidades, riscos, pobreza, violência e desigualdade que a princípio os sonhos parecem contrários a tal realidade dolorida, injusta e endurecida, mas que ao mesmo tempo se mostra terreno em que a fé, o desejo, a luta e a resistência crescem para além da dureza que coexiste junto com os sonhos.
Resistências diante do que tenta enfraquecer e roubar a possibilidade de ser o que se tem o direito de ser. Direito e acesso à saúde, educação, trabalho, lazer e modos de existência mais equânimes e alegres. Em que a força do direito do sonho de ser na gente se espalha por todo lado, fazendo parte de nossas histórias, das linhas de cuidado e dos modos de se relacionar e construir o mundo. A força do direito a cidadania que tensiona até o corpo mais cansado e despercebido a sentir a disrupção escapando pelos poros e rostos das pessoas no território.
O trabalho no SUS e na ESF se constitui a partir dos desafios e potencialidades de uma gestão e atenção do cuidado que reconhece e incorpora as dimensões simbólicas, subjetivas, sociais, culturais, econômicas e políticas em que os processos de adoecimento, saúde e cuidado se tecem. Permeados por contradições, desafios e potencialidades, onde do mesmo solo duro, áspero e doloroso repousa também a esperança por transformação. Sentimentos diversos rasgando o peito cotidianamente na vida escancarada, nem sempre suave e gentil, mas em movimento. Em que as pessoas vão sendo, mesmo doendo. Vão vencendo, mesmo quando perdem. Vão vivendo, mesmo que os tempos sejam duros demais. As pessoas vão seguindo porque a existência carrega a possibilidade de (re)invenção, produção e mudança a partir dos encontros. As pessoas continuam a caminhar, a acreditar e a teimar com as determinações naturalizadas.
Assim, trabalhar no SUS e na ESF enquanto residentes está para além do trabalho individualizado e especializado, para além da compreensão de saúde como ausência de doença, para a aposta hegemônica do modelo biomédico.
A nossa experiência como residentes se tecem nos fluxos, entres e devires da invenção do tempo de florescer, do compromisso ético político da construção e fortalecimento do SUS e da ESF enquanto espaços para as multiplicidades de modos de existência alegres, potentes, equânimes e dignas. Trabalho que acredita que se o tempo das invenções e das flores não fosse possível, por que os olhares das pessoas que chegam até a ESF atravessam com tanta intensidade, cada um de nós profissionais, a ponto que desacreditar nessa florescência é sentir o peito ferido e rasgado pelas iniquidades e injustiças que ainda fazem parte da vida cotidiana no território?
Inventar-se residentes a partir do trabalho no SUS e na ESF é acreditar e lutar para que até o sonho mais cru e insosso, nos olhos opacos e ombros caídos pelo peso da luta cotidiana, ocupe seu lugar de insistência na vida.