Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Aproximações Genealógicas sobre a Residência Multiprofissional em Saúde
Georgia Silva Romcy, Laura Camargo Macruz Feuerwerker, Débora Cristina Bertussi

Última alteração: 2018-01-24

Resumo


Um exercício genealógico acerca de um conceito implica reconhecer que, em diferentes contextos, sentidos diferentes são produzidos e que não se pode nunca transpor sentidos ou imaginar uma evolução linear/progressiva para um, aparentemente, mesmo conceito. Esse é um exercício que pode, potencialmente, abrir novas visibilidades e possibilitar desnaturalizações, importantes para enriquecer o debate e a análise de políticas. É o que pretendemos fazer em torno da Residência Multiprofissional em Saúde (RMS).

Nosso exercício começa reconhecendo que a área da saúde, em específico a Medicina, foi pioneira na proposição da formação em serviço e que a ideia de Residência, enquanto estratégia formativa através de um mergulho intensivo numa experiência prática, tem história anterior à proposição da RMS.

Os programas de Residência Médica (RM) começaram a se multiplicar nos anos 60/70, juntamente com o boom da especialização e do assalariamento na categoria. A abertura desses programas dizia respeito a razões internas à corporação (suas lógicas, relações de poder, prestígio, mercado) sem levar em conta as necessidades de saúde, cumprindo vários propósitos por dentro da corporação, para os hospitais e o mercado privado da saúde. Também evidenciava um conceito fundamental dentro da formação médica: o de que a prática era decisiva no processo de formação médica. Assim, durante um longo período, os médicos foram a única categoria profissional a ter seu processo de formação transformado em política, financiado com recursos públicos e sob controle da corporação. Consideramos que a força que se apropriara do tema residência era o modelo médico-hegemônico, produzindo como valor a formação hospitalar orientada para o mercado.

Depois da criação do SUS, o problema do desencontro entre a formação dos profissionais e as políticas e necessidades do sistemas começou a ser reconhecido (apesar de já haver segmentos mobilizados e batalhando por mudanças).  No campo da saúde da família, as primeiras iniciativas nesse sentido foram uma combinação de cursos introdutórios curtos e de especialização. Posteriormente, há o reconhecimento de que seria importante adotar outras modalidades, que possibilitassem mudanças mais efetivas nos conceitos e práticas.

O Ministério da Saúde (MS) se movimenta: aprovando, em 2002, o financiamento de alguns programas de RMS em saúde da família e, no ano seguinte, criando a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), organizada em dois departamentos (DEGES e DEGERTS), marcando a decisão política de responder a problemas ainda não tratados na construção do SUS.

Com o conjunto de movimentos produzidos pela política de educação na saúde, foi sendo forjada força política, vinda, prioritariamente, dos movimentos sociais, de mudança na formação, estudantil e de trabalhadores de saúde, incluindo o Conselho Nacional de Saúde (CNS). Uma outra força disputava a apropriação do tema residência: necessidades de saúde, produzindo como valor a formação interprofissional, a integralidade, a construção compartilhada do cuidado com os usuários, residência orientada ao fortalecimento das políticas públicas de saúde.

A equipe do DEGES/SGTES acumulou forças para fazer enfrentamento mais efetivo em relação às resistências do MEC quanto à RMS, sendo possível colocar a Residência Multiprofissional na agenda, pois mexer na Residência Médica virou prioridade por conta da proposta de “serviço civil” (tema prioritário da Presidência da República). Com isso, foi possível negociar a criação da Residência Multiprofissional e em Área Profissional da Saúde, por meio da Medida Provisória 238 (posteriormente Lei 11.129) sobre Juventude. Na descrição das profissões da saúde que participariam, explicita-se a não participação dos médicos.

Assim, a RMS tomou emprestado da Residência Médica o nome e o precedente de haver um processo de especialização em serviço, reconhecido pelo MEC e com bolsas pagas com recursos públicos. A aposta não tinha sentido corporativo, olhava para as necessidades de saúde da população e das políticas orientadas à integralidade, que pedem equipes multiprofissionais; para a mudança do modelo tecnoassistencial; e apostava na produção de um contingente de profissionais militantes pelo SUS e pela integralidade. Portanto, esses eram os valores criados pela força necessidades de saúde, que disputa o conceito de residência com a força modelo médico hegemônico.

A RMS, então, foi criada no bojo de uma política inteira de formação pelo trabalho, com um forte vetor de interprofissionalidade. Entretanto, antes da regulamentação da lei efetivar-se, houve troca de Ministro da Saúde e todas as mudanças que haviam sido aprovadas no âmbito da CNRM ficaram congeladas. A Residência Multiprofissional entrou em compasso de espera também. Lei aprovada, vários programas novos financiados pelo MS implementados, mas sem avanços na regulamentação.

Depois das intensas pressões, em 2007, a Comissão Nacional de Residência Multiprofissional e Área Profissional em Saúde (CNRMS) foi instituída. Em sua composição inicial, a força necessidades de saúde, produzindo os valores mudança na formação e no modelo tecnoassistencial à luz da integralidade e da produção compartilhada do cuidado, era mobilizada por todos os componentes da Comissão, embora com reticências pelos Ministérios da Saúde e da Educação.

Foram muitos tensionamentos e decisões contraditórias, este é o preço de disputar um conceito e, ao mesmo tempo, compartilhar um arranjo institucional com a força modelo médico-hegemônico: carga horária de 60 horas/semanais em contrapartida às bolsas equivalentes às dos residentes médicos. Programas necessariamente em parceria entre instituições de ensino e o SUS, mas com prerrogativa das instituições de ensino para propor os programas. A paralisia no tema da avaliação e certificação dos programas, pois a certificação continua sendo de especialização lato sensu.

As tensões entre Ministérios e demais componentes da CNRMS, levaram a sua dissolução. Depois de um tempo suspensa, em fevereiro de 2010 a Comissão foi re-instituída com nova composição, sendo novamente dissolvida em agosto do mesmo ano, voltando a se reunir somente em 2014.

A partir de 2011, houve renovação da composição política no MS, que não correspondeu a mudanças significativas em relação à política para as RMS, pois havia-se priorizado o assunto médicos, em específico o Programa Mais Médicos (PMM) no confrontos políticos com o MEC e com a força modelo médico-hegemônico. Essa foi uma iniciativa regulatória em relação à produção de médicos para o Brasil, possibilitando que a força necessidades de saúde pudesse operar no território da profissão médica. Nesse processo, muitos municípios, com a possibilidade de instituírem programas de RMS sem precisar contar com a parceria de uma instituição de ensino superior, acabaram por também implementá-los, reconhecendo sua potência para qualificar o trabalho em saúde.

A Residência Multiprofissional cresceu em números de programas, mas sem que houvesse força política para enfrentar limites e gargalos. Entretanto, as bolsas não foram alvo de cortes, o que diz algo a respeito da potência desse processo formativo e de seu papel no provimento de profissionais nos serviços, sustentado ativamente por diversos atores.

Por fim, Residência não é mais formulação exclusiva da saúde. Aliás, as Residências artísticas, por exemplo, existem desde os anos 60. E a área de tecnologia se espelha nas formulações da residência médica, havendo casos de financiamento público e de financiamento privado para sua efetivação, incluindo ou não o pagamento de bolsas para os residentes.

Novos vetores são instituídos. De mudança e inovação pelas residências artísticas (compondo com a força necessidades de saúde). De reconhecimento da prática e da experiência como fundamentais para a formação, ainda que orientada diretamente pelo mercado em muitos dos demais casos (compondo com a forca modelo médico-hegemônico).