Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Cuidar do residente: a importância de individualizar o plano de ensino
Pedro Toteff Dulgheroff, Juliana Sampaio, Danyella da Silva Barreto

Última alteração: 2018-01-26

Resumo


Apresentação: A Residência em Medicina de Família e Comunidade (RMFC) existe desde a década de 80. Contudo, o percentual de médicos de família e comunidade em 2015 era de 1,2% do total de médicos no país. Frente a isto, o governo federal tem investido em programas para a ampliação do número de vagas para a especialidade, numa tentativa de suprir a demanda crescente desse profissional na atenção primária à saúde. A Universidade Federal da Paraíba (UFPB) abriu sua RMFC em 2010, com cinco vagas, ofertando atualmente 16 vagas anuais. Através da Rede Escola, estimula a integração ensino-serviço em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de João Pessoa – PB. Ao ingressarem na RMFC, os residentes são vinculados como médicos em uma das equipes de saúde da família no município. No campo, eles são acompanhados por preceptores formados em MFC, que trabalham na mesma unidade de saúde, e por docentes da UFPB, que atuam como professores-tutores de núcleo e de campo, sendo estes últimos com diferentes formações acadêmicas. A RMFC se apoia na integração ensino-serviço, buscando construir processos pedagógicos a partir das demandas e necessidades de cada território e do percurso de aprendizagem de cada residente. A partir desse arranjo organizativo, várias experiências de gestão do trabalho e produção do cuidado em saúde são vivenciadas por esses atores. O presente trabalho tem como objetivo colocar em análise uma experiência vivenciada por um preceptor de campo e duas professoras-tutoras na construção de um processo pedagógico singular e cuidador para uma residente, ora denominada Flor.

 

Desenvolvimento: A história de vida e o itinerário pedagógico de Flor foram fundamentais para a construção de um processo pedagógico singular e afetivo. Recém-chegada em João Pessoa, Flor não tinha rede de apoio. Um dos pontos marcantes de sua trajetória, a revalidação do diploma, aconteceu em 2014, após muitas tentativas. Esse processo, muitas vezes violento, deixou marcas profundas em sua confiança e autoestima. Verbalizava que o fato de contar com a supervisão de tantos profissionais e tão próxima foram os fatores que a levara a escolher a UFPB. Na prática, como forma de proteger-se de novas frustrações, tinha dificuldade de vincular-se com o novo, fosse com a equipe ou docentes. Vivia momentos de “terror” ao ouvir o termo avaliação, mesmo que esta tivesse caráter formativo e não punitivo. Foram muitas as vezes que considerou desligar-se do programa nos primeiros meses. Evitando o preceptor e as tutoras, buscava superar suas dificuldades estudando em casa. Considerava que a equipe ouvia apenas a enfermeira ou seu preceptor. O que a fortalecia e mantinha viva sua vontade de continuar eram os comentários de satisfação e o carinho dos usuários. Refugiava-se em seu consultório, local onde tinha “controle” da situação. No início, foram muitas tentativas de aproximação dos docentes, sempre vistas com desconfiança ou cobrança por Flor. O ponto de virada, que proporcionou sua abertura à mudança, foi uma avaliação feita no primeiro semestre. Acompanhada pelo preceptor em uma consulta a uma criança resfriada, Flor ficou imobilizada pelos sentimentos antigos e chorou compulsivamente. O preceptor então deu sequência à consulta. Após finalizar o atendimento, dedicou-se a acolher as angústias de Flor. Era a primeira vez que ela conseguia expressar o alto grau de sofrimento que vivenciava. Aos poucos, preceptor e tutoras procuraram facilitar que Flor fizesse uma ressignificação de si, do trabalho e de sua formação. Inicialmente, acolhendo-a nos momentos de crise, tão comuns na formação baseada no trabalho vivo, produzido em ato. Um novo modelo de avaliação foi pensado pelos docentes para o final do segundo semestre. Consistia em um questionário de múltipla escolha, com questões relacionadas ao dia a dia da unidade, sem uma nota atribuível, baseado em conceitos como “faz”, “faz quase sempre”, “não faz”, etc. Para diluir o peso do avaliador externo, optou-se por construir um coletivo de olhares. O mesmo deveria ser auto aplicado por Flor, mas também respondido pelo gerente da unidade, equipe de saúde, usuários e preceptor. Apesar da ansiedade de Flor, a avaliação com seu aspecto informal, transcorreu sem problemas. Em reunião com o preceptor, Flor ficou surpresa ao ver que a pior avaliação tinha sido a que ela se deu, discordando muito em alguns pontos de todos os outros avaliadores. Isso a permitiu colocar-se em análise. Percebeu-se muito rígida consigo e o preço que vinha pagando por seu isolamento. Este evento marcou o início de uma parceria entre ela e os docentes que se fortaleceu cada vez mais durante o restante de sua formação. Ela passou a acompanhar as atividades que o preceptor desenvolvia com alunos da graduação e com outro residente da unidade. As tutoras mantiveram-se próximas, mas sempre atentas ao tempo de Flor. No início do segundo ano, mais uma avaliação foi organizada, dessa vez mais formal, na UFPB, para dar feed-back das ações desenvolvidas até aquele momento. Fazia-se necessário construir caminhos para ela atingir as competências previstas para sua formação. Uma escolha delicada, que poderia levar a um retrocesso na relação estabelecida, caso Flor percebesse o encontro como medição ou juízo de valor. Flor iniciou relatando seu processo até então e a aproximação gradual que vinha conseguindo realizar com a academia. Quando chegou a hora de ouvir, como esperado, os sentimentos ruins voltaram à tona. Seu choro foi acolhido e suas angústias foram sendo gradativamente trabalhadas. Focou-se então em seus avanços e traçou-se um plano de exposição gradual às situações que a deixava desconfortável: grupos de educação em saúde, gestão do trabalho em equipe, consultas conjuntas e discussão técnica de casos. Ela precisava exercitar “pedir ajuda” para o preceptor e tutoras e supervisionar alunos da graduação, seu maior medo. Pouco antes do final da residência, seu preceptor mudou-se para outro município. Flor assumiu sem dificuldade a posição de referência para a unidade. Ela abriu as portas de seu espaço mais protegido, o consultório, passando a gostar das atividades que desenvolvia agora como docente.

 

Resultados: Compreender a singularidade de Flor, respeitar seu tempo e elaborar um plano pedagógico singular e afetuoso, com sua participação efetiva, permitiu a Flor ressignificar vários de seus processos. Ela recuperou sua autoconfiança, perdeu o medo de arriscar-se em novos campos, empoderou-se frente à equipe e perdeu o medo de falar sobre suas dificuldades, passando a buscar ajuda quando necessário. Cumpriu com todos os objetivos estabelecidos e, em muitos casos, surpreendeu seu preceptor e suas tutoras por ir além daquilo que era esperado. Posteriormente, Flor relatou que a postura acolhedora dos docentes e a forma carinhosa como o processo foi conduzido foram fundamentais para sua mudança de postura.


Considerações finais: A inserção dos residentes no cotidiano das unidades são a argamassa do processo de formação dos futuros MFC da UFPB, permitindo uma formação comprometida e contextualizada com SUS, tornando-os mais preparados para o desempenho de suas atividades profissionais. Ressalta-se a importância de dar sentido e de produzir um processo de aprendizagem singular e significativo para todos os envolvidos, tornando a formação um processo também cuidador. A capacidade de Flor se reinventar certamente influenciará toda sua vida, pessoal ou profissional, que agora, após desabrochar, está pronta para espalhar seu perfume por onde quer que vá.

Palavras-chave


Medicina de Família e Comunidade; Residência Médica; Ensino