Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida
v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Última alteração: 2018-05-07
Resumo
Este texto resulta da pesquisa Avalia quem pede, quem faz e quem usa (2013 a 2017) e integra as análises da Rede de Observatórios Microvetoriais de Políticas Públicas em Saúde e Educação em Saúde, que têm apostado em dois planos de exploração sobre o processo de fabricação de Políticas – a genealogia e a análise da Política como dispositivo. Sobre à genealogia, partimos do pressuposto que o exercício genealógico permite compreender as forças que se apropriam de uma questão e o como ocorrem as disputas segundo os valores e sentidos construídos por estas forças. Quanto à análise ao segundo, objeto deste texto, consideramos que ele possibilita compreender que, embora as Políticas busquem fabricar processos de subjetivação e operem nessa perspectiva, os atores envolvidos nesta construção produzem múltiplas possibilidades de movimentação. Nosso objetivo é discutir como a Política Nacional de Atenção à Pessoa com Deficiência operou em São Bernardo do Campo quanto à proposta de organização do cuidado em saúde e aos arranjos fabricados pela Secretaria Municipal de Saúde na composição do cuidado à pessoa com deficiência. Trata-se de analisar o dispositivo como um disparador de vetores e de recolher o modo como distintos atores operam neste âmbito. A metodologia adotada foi a cartografia, na qual o método é o encontro. Nesta trilha, encontramo-nos com a questão candente do processo de construção do serviço: fabricar um CER IV em rede. Tal aposta decorreu do movimento de qualificação da rede (2009-2016) e da proposição de diversos dispositivos para sua efetivação (via gestão central, departamentos/serviços e trabalhadores), do que resultou a fabricação de uma outra vista do ponto (e não de outra perspectiva de um mesmo ponto de vista) sobre a produção do cuidado no município, incluindo a temática da reabilitação. O CER foi tecido em SBC a múltiplas mãos, segundo os pressupostos de produção do cuidado compartilhado entre pontos da rede e de arranjos interprofissionais (incluindo familiares/cuidadores), como parte da reestruturação da atenção ambulatorial especializada num contexto de fragmentação da oferta de reabilitação, de invisibilidade para as necessidades desta população e de não previsão da construção de um CER no município. Neste processo foi decisiva a participação da gestão (que disputou a viabilidade do serviço) e dos apoiadores de rede (que ajudaram na produção de visibilidades para o tema e na tessitura de relações do CER com a rede, mesmo com especificidades e permeabilidades distintas para os problemas). Dos resultados apontamos os efeitos na movimentação dos distintos atores (gestores e profissionais do CER, bem como de outros serviços) tendo em vista a aposta na produção de um arranjo em rede que articulasse as estratégias e as ações de reabilitação existentes e que incluísse novos desenhos, desdobrando a proposição do modelo assistencial do texto da Política Nacional. Destaca-se ainda a implicação dos trabalhadores na discussão de distintos arranjos de cuidado que contribuiu para a produção de sentido de pertencimento e de responsabilização e, possibilitou a abertura do serviço para a composição de uma rede nas/entre as equipes e para fora dele. Neste movimento foram produzidos os elementos estruturantes do serviço: o acolhimento não regulado/porta aberta, a interdisciplinaridade e o tema da alta. Sobre o primeiro, a proposta era torná-lo o único mecanismo de acesso (oportuno e necessário) e tal aposta demandou pactuações com a rede, visando recompor a solicitação de atendimentos (distintos encaminhamentos para diferentes profissionais) para reabilitação, tendo sido fundamental nesta construção o papel dos apoiadores. Após um período de realização do acolhimento em dois dias da semana por uma assistente social, houve o questionamento sobre a possível inclusão de alguns casos via regulação, o que provocou o posicionamento da equipe pela continuidade da porta aberta e pela necessidade de recomposição de tal tarefa, que passou a integrar o processo de trabalho no CER (incluindo o importante apoio da recepção). Quanto ao atendimento interdisciplinar, este também assumiu distintas configurações dentro e fora do CER, a depender da necessidade das pessoas, a exemplo do arranjo para usuários com disfagia e com dores osteomusculares crônicas (que extrapolou os muros do serviço), a reorganização da fila de otorrinolaringologia e a estratégia “vir a ser” (voltada ao cuidado de crianças com risco psíquico não poderiam ser acolhidas no CER, por não apresentarem deficiências e crianças com alguma deficiência que apresentavam tal risco psíquico). Em compasso com estes dois aspectos, o tema da alta também foi incorporado como estruturante, sendo trabalhado com os usuários e seus familiares/cuidadores como parte de um processo de reabilitação para a vida, desde o acolhimento. Percebe-se que o valor atribuído à processualidade (como noção constitutiva da fabricação do serviço) contribuiu para demarcar uma mudança de conceito, de modelo e de cuidado sobre o tema da reabilitação. Fabricou-se, assim, uma oposição ao entendimento tradicional sobre os centros de reabilitação que privilegia uma lógica fragmentada (multiprofissional e não interdisciplinar), desarticulada (outros espaços de cuidado e de distintos modos de seguir a vida) e limitadora do acesso (definição prévia do número de atendimentos; impossibilidade de entrada de outros usuários e institucionalização daqueles que acessavam o serviço). Das considerações apontamos que a construção em rede do CER IV em SBC mostrou que as apostas e os arranjos locais podem ser decisivos na fabricação de movimentos para além do que determina o texto da Política, havendo múltiplas possibilidades de produção, apesar dos eventuais limites das definições legais. A experiência reforça que, como dispositivo, a enunciação da necessidade de uma rede é um vetor frágil para enfrentar a histórica fragmentação dos serviços de reabilitação e a redução da pessoa com deficiência à condição de consumidores-indesejáveis-descartáveis-improdutivos, não obstante a afirmação das necessidades e potencialidades dos usuários como critério para a necessária articulação de um cuidado em rede. Tornou-se nítido que o processo de invenção de uma política de cuidado para a pessoa com deficiência foi marcante na reinvenção do modo de pensar a atenção especializada em SBC. Isso mantem relação com a produção de visibilidades para as questões e necessidades da pessoa com deficiência (em ato e nos territórios) que foi desdobrada com a fabricação de modos de cuidar orientados segundo distintas formas de compor e de conduzir essas existências. Mesmo com os desafios e tensionamentos que permaneceram (baixa visibilidade em alguns territórios para o cuidado produzido no CER, articulação restrita entre o CER e a atenção básica, limitada sustentabilidade de algumas articulações), ficou evidente que distintos atores (além dos que ocupam os lugares formais da gestão) podem interferir decisivamente na produção da gestão e das políticas, justamente porque todos fazem gestão e todos reinventam as políticas no cotidiano da gestão e do cuidado. O arranjo produzido em SBC para as pessoas com deficiência foi inovador na construção de um serviço em rede e não regulado, o que mostra a potência da invenção local na superação dos limites das proposições nacionais. Concluímos que a análise de Política como dispositivo (como os exercícios genealógicos), apesar dos vetores biopolíticos que nos atravessam, ajuda a pensar sobre um conjunto de questões e de interlocuções não produzidas no campo e sobre possibilidades de compor modos de cuidar em saúde menos subordinadores e homogeneizantes, mais porosos à diferença e em ato.