Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Da paisagem a outras vistas do ponto: experimentações no acompanhamento de estudantes de graduação em Saúde Pública da USP nos territórios.
Valéria Monteiro Mendes, Laura Camargo Macruz Feuerwerker

Última alteração: 2018-01-16

Resumo


Como parte da fabricação de uma outra vista do ponto sobre o processo formativo em saúde (e não de outra perspectiva de um mesmo ponto de vista), o curso de graduação em saúde pública da Faculdade de Saúde Pública da USP apostou na invenção de um eixo curricular que propicie aos estudantes experiências no campo da saúde pública/saúde coletiva por meio da disciplina Atividades Integradas, durante setes semestres. Este texto resulta da experiência na disciplina (segundo semestre 2016), que enfatizou a produção social da saúde nos territórios, de modo que os estudantes construíssem aproximações e análises sobre como as pessoas produzem suas vidas nos locais em que habitam, para além do olhar disciplinador, moralizador e prescritivo que predomina no campo da saúde. Nosso objetivo é compartilhar um modo de estar com os alunos nos territórios, apostando no aprendizado pelo vivido. A metodologia aproximou-se da cartografia, na qual o método é o encontro. Na experiência descrita, seis aulas foram destinadas às visitas e duas ao compartilhamento das vivências. As visitas ocorreram com o apoio de monitores, que ajudaram na articulação das entradas nos territórios, acompanharam os estudantes nas visitas e problematizaram o que era recolhido do encontro com outros corpos, espaços e tempos. Os alunos dividiram-se em cinco grupos, cada qual com um território de interesse. Neste grupo, o local escolhido foi o Sítio Joaninha (entre São Bernardo do Campo e Diadema), em decorrência de um estudante, morador de Diadema, ter relatado que acreditava-se existir ali uma comunidade quilombola. Diferentemente dos anos anteriores, não tínhamos articulações prévias com o território. Isso provocou debates sobre as dificuldades/limitações de construirmos entradas sem pontos de interlocução. Assim, buscamos ajuda em uma UBS de São Bernardo (devido ao trabalho de Educação Permanente da docente no serviço). Por meio de um apoiador de rede e de uma ACS realizamos várias visitas e conhecemos moradores e seus familiares. Paralelamente, tentamos construir conexões em Diadema. Processo que detalharemos devido ao tema da ausência de interlocutores. Na UBS, confrontamo-nos com obstáculos burocráticos (exigências informadas por uma enfermeira), que superamos ativando nossa rede informal de conexões, visando fabricar caminhos mais próximos de nossas necessidades. Por intermédio de uma colega do grupo de pesquisa (trabalhadora de um CAPS em Diadema), contatamos uma assistente social, que ajudou na aproximação com uma moradora por ela atendida, que coordenava uma ONG no Sítio Joaninha. Tecer esta aproximação demandou o aguçamento de nossa sensibilidade, pois éramos permanentemente convocados a lidar com as questões, os valores, as concepções, os medos e o tempo daqueles que eram convidados a abrir seus territórios (geográfico e existencial). Nesta trilha, conhecemos as atividades de um núcleo da ONG (hip-hop, leitura, desenho, gastronomia), que visava, segundo a moradora, ocupar o tempo livre de crianças/jovens (para que não fossem atraídos para as drogas) e formá-los para o mercado de trabalho segundo valores de empreendedorismo. Nas andanças, ouvimos sobre as dificuldades de viver na divisa entre São Bernardo e Diadema, sobretudo pela indefinição de responsabilidades para a realização de obras e serviços (saneamento, energia, transporte). Entrevimos a comunidade desta moradora (mais distante do Sítio Joaninha, vizinha a um grande terreno particular sem uso), composta por um pequeno número de famílias, que cotidianamente compunham redes de proteção/apoio para suas questões. Porém, apesar das tentativas desta moradora, a comunidade carecia de fortalecimento, por exemplo, para a constituição de uma associação de moradores que ajudasse no enfrentamento de vários problemas (limitada oferta de transporte público, inexistência de espaços públicos de lazer, recusa de atendimento em serviços de saúde pela não comprovação de endereço, impossibilidade de acesso do SAMU e dos bombeiros pelas condições da região, poucas oportunidades de trabalho). Posteriormente a estas visitas, esbarramos na falta de vínculo com a moradora e decidimos não retornar sem sua companhia. Havia que ser respeitado nosso limite como estrangeiros e precisávamos considerar o sentido de estar com um morador no território: a abertura de caminhos para a fabricação de encontros.  Por que as pessoas aceitam viver ali? Por que não procuram um emprego para saírem daquela situação? Será que elas gostam de morar ali? Estas foram algumas questões que atravessaram os estudantes e que possibilitaram distintos processamentos no “entre” de nossas visitas. Processar trata-se de um ato implicado com a identificação e a problematização dos efeitos produzidos em nossos corpos ao nos encontrarmos com outras existências, segundo o que nos atravessava (afetos/concepções de mundo/valores/temporalidades/modos de viver). Isso remete a um processo de desmarcar o corpo, na qualidade de um exercício constante de eliminação dos registros da governamentalidade, que valida certos modos de pensar-agir-existir em detrimento daqueles considerados “descartáveis” por não se enquadrarem nesta grade hegemônica (vide as persistentes e flagrantes apostas em diversas produções de morte – física e existencial – que nos atravessam). Analisando esta experiência, consideramos que a formação em saúde (como uma formação de viventes) é processual e permanente, sendo fundamental apostarmos na ocupação do olhar, que conforma paisagens sobre a vida das pessoas (tomada como estática e governável na formação e, posteriormente, no trabalho), como possibilidade de substituí-lo por outra mirada (outra vista do ponto). Com tal ressignificação, busca-se dar a ver (transver) a intensa operação de modos pelos quis as pessoas organizam e conduzem suas vidas (dos quais tanto o campo da saúde quanto as políticas públicas têm permanecido muito distantes). Tal tessitura requer sensibilidade e rigor para a construção de encontros que nos afastem da repetição e nos aproximem de modos de estar com o outro segundo suas singularidades e necessidades. Nesse sentido, problematizamos com os estudantes que, apesar das vulnerabilidades e dos distintos problemas constatados, não podemos falar e decidir sobre a vida do outro sem aprofundarmos o entendimento sobre as experiências vividas por ele, pois sem isso permaneceremos enfatizando o modo reducionista, caricatural e opressor da saúde enxergar o outro, que deslegitima as distintas formas de existir. Não buscamos propor um modelo a ser replicado. Interessou-nos partilhar uma experimentação que apostou no aprendizado pelo vivido e na capacidade de fabricar potências segundo outras movimentações (da ordem de uma visceralidade), particularmente considerando o modo de a saúde entrar nos territórios, que privilegia o governo das vidas (concebidas como paisagens). Esta operação micropolítica diz da implicação com o deslocamento do olhar que ignora que múltiplos planos conformam as existências e que infinitas formas de viver são produzidas (no lugar da ausência de invenções e de resistências que a saúde supõe haver nos territórios). Isso ajuda a produzir análises sobre o que orienta o nosso pensamento e sobre o lugar ocupado pelos distintos atores nas ações de saúde quando privilegia-se os saberes estruturados e os procedimentos, como possibilidade de assumirmos o cuidado como algo que pertence a todos (e não apenas aos profissionais de saúde). Apesar dos atravessamentos biopolíticos, que insistem em roubar nossa vitalidade e capacidade de resistir, apostar na fabricação de outra vista do ponto (transversão do olhar) com os estudantes (na qualidade de um ato ético-político) ajuda a enfrentar a impermeabilidade para os diferentes modos de viver, bem como a dar visibilidade para as potências que se constituem nos territórios, como possibilidade de operarmos composições mais solidárias, na diferença e em ato.


Palavras-chave


Formação em saúde; Cuidado; Cartografia