Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Criação de futuro e construção de cidadania entre articulação social e acompanhamento terapêutico de mulheres vítimas de violências e vulnerabilidades.
Károl Veiga Cabral, Márcio Mariath Belloc

Última alteração: 2018-01-25

Resumo


Neste trabalho vamos contar histórias vividas durante o desenvolvimento do Projeto Redes III em Porto Alegre. Durante o nosso trabalho, percorremos um território visível e geograficamente demarcado, mas também compartilhamos os territórios existenciais daquelas com quem dialogamos ao longo desse processo. Apoiados na metodologia do etnógrafo, a partir das narrativas das informantes, chegamos às dinâmicas relacionais presentes em cada território para propor uma intervenção capaz de atender as demandas das mulheres vítimas de violências e vulnerabilidades na cidade de Porto Alegre.

É a partir das histórias dessas mulheres que encaramos o desafio de acompanhá-las, na perspectiva de encontrar junto com elas pontos de ancoragem, desenhar possibilidades, construir pontes para a saída do circuito de violência. O imenso desafio estava também na corrida contra o tempo, trabalhando com um tempo outro. Tempo de prontidão de cada uma dessas mulheres para viver essa história e reescrevê-la de uma outra maneira. Também é um tempo outro para os serviços engessados nas condutas do cotidiano e no modo clássico ofertado de produzir saúde. Exigiu de cada um de nós uma disponibilidade de estar junto, compondo com as equipes já presentes em território para, junto com as mulheres, nos lançarmos nesse trabalho e garantir o cuidado longitudinal – o Redes entra e sai dos territórios acionados, mas a rede com suas equipes permanece. Nossa equipe em Porto Alegre era formada por um coordenador de território, três supervisorxs e cinco articuladorxs sociais.

O trabalho dxs articuladorxs sociais do Redes em território teve como ferramenta primordial a modalidade do acompanhamento terapêutico (AT). O AT como ferramenta nos oferece uma possibilidade única de circulação, uma disponibilidade para circular entre espaços instituídos e o fora, uma disponibilidade para o encontro com o outro através de um contrato ético relacional, pautado na busca da autonomia e de protagonismo do acompanhado. O AT tem como premissa fazer com o acompanhado, e não fazer pelo acompanhado, respeitar seus desejos e seu ritmo, bem como suas possibilidades, além de não fazer um julgamento moral do tipo de vida que o sujeito leva, mas tentar intervir para que o mesmo possa viver melhor, com mais qualidade de vida com suas escolhas. Coube ao articulador social adentrar ao território e aproximar-se dos serviços ofertando-se para acompanhar as mulheres. Estas foram acessadas a partir do encontro com os serviços e dispositivos comunitários, a partir do qual se construiu a demanda de AT. É nessa pactuação que foram encontradas as pessoas que se beneficiaram desta prática. Uma vez munidos destas informações, cada articulador(a) social buscou formas de se aproximar das mulheres, através da relação já estabelecida delas com as equipes e serviços. Não obstante, também atuaram a partir de uma busca ativa em território, sempre articuladxs junto com as equipes, para acessar as mulheres que não constituíram vinculação com a rede. Os acompanhamentos se desenvolveram no tecido social, permitindo-nos auxiliar as mulheres na busca de acesso a cuidados e direitos. Acompanhamentos que passaram por conhecer seus itinerários terapêuticos e de vida, conhecer melhor as dificuldades de acesso e as dificuldades que encontram em seus cotidianos para saírem do circuito de violências.

Acompanhamentos que buscaram não cair na armadilha de reduzir a experiência destas mulheres a um olhar biomédico, dando possibilidade para enunciarem suas verdades, inclusive dos saberes oriundos do próprio sofrimento. Observa-se nos serviços, certa falta de espaço para a palavra, tanto de quem cuida quanto de quem é cuidado. Palavra muitas vezes secuestrada ou colonizada pelo discurso biomédico hegemônico. Muitas vezes, a relação do trabalhador/usuário, seja na atenção primária, seja no campo das especialidades, é regida por um tempo cada vez menor, fazendo com que o momento clínico, que seria o espaço para aprofundar a aprendizagem (já que é um tempo de aberturas afetivas e cognitivas para poder assumir o prescrito de uma maneira experiencial), está totalmente condicionado pelo tempo objetivo da consulta. E antes de ser um encontro entre trabalhador e usuário, parece mais seguir a forma médico/paciente do citado modelo.

Assim, partimos de um imprescindível resgate do espaço para a palavra e para um efetivo encontro com o outro. Aprender na experiência da troca com o outro que nos interpela e que também é interpelado. Produzir saúde em um encontro no qual o saber experto tenha tanto valor quanto o saber constituído a partir da experiência do padecimento. E a ferramenta do AT nos permitiu constituir este tempo outro para a escuta. Ao circular pelo tecido social, por vezes inclusive em busca de um atendimento, de um direito, o(a) articulador(a) social escutou e vivenciou junto com as mulheres esse itinerário. Conectou palavra e ação, rompendo com o instituído fazendo emergir possibilidades para o instituinte.

Além do tempo para a palavra, para o encontro, foi preciso tomá-la realmente como um saber produzido em primeira pessoa por quem nos enuncia sua narrativa, sua história: escutar o saber da usuária sobre seu próprio processo, as escolhas que fez ao longo da vida, os itinerários que percorreu em busca de ajuda, de uma suposta cura ou solução para o seu problema; tomar os saberes profanos (estes produzidos a partir da experiência do padecimento) como parte fundamental do processo de análise das condutas a serem propostas pelas equipes à usuária.

Outra importante face dessa intervenção foi a comunicação e intermediação entre os diversos mundos culturais, de trabalhadores, gestores, ativistas sociais e as mulheres acompanhadas. Uma produção de cuidado e cidadania também a partir da proposição de uma forma de relação singular entre os atores envolvidos no processo, colocando em simetria o discurso nativo e o discurso do experto. Enquanto terapéutica e produção política, recorreu os cabedais teóricos que lhe sustentam, utilizando seu caráter de especialidade, mas sempre reconhecendo o saber local ou os saberes profanos daqueles coletivos plurais. O desafio foi assumir uma postura de não saber frente aos atores em território, permitindo assim que a fluidez do encontro sem contaminação com o saber do especialista. Dessa maneira, a voz dos trabalhadores e, principalmente, das mulheres acompanhadas tiveram um papel fundamental na análise dos territórios existencias, nas potencialidades e na estruturação da própria intervenção. Todos os saberes ali colocados em pé de igualdade, justamente a partir de sua diversidade. Potencializar o encontro com a alteridade, favoreceu a criação do próprio encontro, da intervenção e, fundamentalmente, de outros futuros possíveis para todos os envolvidos.


Palavras-chave


acompanhamento terapêutico; articulação social; gênero; cidadania