Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Multiplicidade bricoleur, experimentação e montagem de dispositivos em processos de (des)formação em saúde mental no contexto da saúde indígena na Bahia
LEONARDO JOSÉ DE ALENCAR MENDES

Última alteração: 2018-01-26

Resumo


Frente à urgência da produção de novos modos de operar o cuidado em saúde mental em tempos de retrocessos manicomiais, este trabalho trata de experimentações em andamento no campo da formação em serviço na saúde indígena. Nelas se inserem os desafios da construção de cuidados psicossociais na Atenção Básica, considerando suas singularidades em contextos ameríndios no nordeste brasileiro. Este trabalho compartilha efeitos de experimentações metodológicas em espaços de formação (Educação Permanente e Apoio Matricial em Saúde Mental) ocorridos junto a profissionais da saúde indígena do Distrito Sanitário Especial Indígena da Bahia, traçando alguns desdobramentos decorrentes.

Através de encontros realizados com profissionais das equipes multidisciplinares da saúde indígena, no intuito de construir arranjos locais para os cuidados biopsicossociais, foram possíveis as experimentações metodológicas em pauta. Em sua maioria, os encontros foram realizados em territórios indígenas, tendo como temática maior a ser desvendada a saúde mental no contexto indígena, contando com a presença de profissionais indígenas e não-indígenas. Estes são responsáveis pelos cuidados em saúde no nível da atenção básica em diferentes territórios indígenas no estado da Bahia. Os encontros se caracterizam pela reunião de profissionais das equipes de uma mesma região, que para operacionalização da descentralização administrativa e assistencial da política da saúde indígena, chamam-se tais unidades de Polo Base. Em alguns dos encontros estiveram presentes representantes do Controle Social Indígena, assim como atores da Rede de Atenção Psicossocial, principalmente, profissionais dos Centros de Atenção Psicossocial. Algumas ações se desdobraram também para atuação junto à população indígena local, de modo a conhecer e produzir cuidados em saúde mental, intervindo no cotidiano das comunidades e dos serviços de saúde. Diante da função da gestão do programa de saúde mental, a responsabilidade técnica de viabilizar os encontros também possibilitou a experimentação no modo de operá-los. A liberdade para tal experimentação advém do ineditismo dos encontros, desprovidos de formatações institucionais. Compreende-se que a conquista desta agenda já se trata de uma intervenção organizacional a nível do distrito. Assim, as inquietações citadas no início do texto fomentaram a busca por uma singularização em termos de proposições metodológicas e de tratamento dos temas da saúde mental. Para isso, a montagem dos dispositivos de ação-intervenção se deu em busca da multiplicidade de ferramentas. A isto chamamos de multiplicidade bricoleur. O uso e a mistura de recursos de diferentes áreas, das ciências às artes, possibilitou abordar o tema da saúde mental contemplando as dimensões subjetivas e institucionais intrínsecas ao agir em saúde, para além das técnicas protocolares. As práticas integrativas e complementares também foram incorporadas nas montagens metodológicas. Todavia, foram postas em ação para estrategicamente colocar em análise os processos cotidianos de trabalho (Educação Permanente), assim como para conectar e produzir, a partir das vivências corporais e incorporais dos participantes, conhecimentos para os cuidados em saúde mental (Apoio Matricial). Tal funcionamento de diferenciação que a montagem produz nos procedimentos que reúne se trata de uma ação intencional, conectada à dimensão ético-estético e política, devendo também às proposições do Esquizodrama. A problemática da prática bricoleur tem servido para intervenção nos diversos regimes de produção subjetiva para os cuidados em saúde mental em profissionais da saúde indígena, inclusive para o profissional que a propõe, tendo em vista que também compõem a força de trabalho, também sendo afetados pelos funcionamentos grupais e organizacionais. A análise destes, junto com a das afecções, seja nos efeitos ocorridos em ato nos encontros, nas durações subsequentes, assim como no processo de planejamento, execução, avaliação e monitoramento, também se apresenta enquanto recurso relevante para compreensão dos processos de captura-repetição e de singularização-diferença que se operam sobre os cuidados em saúde mental nos contextos aplicados.

A realização dos encontros tem viabilizado acontecimentos de diversas ordens, tanto nas pessoas envolvidas, como nos serviços de saúde indígena. É marcante e facilmente identificável o contraste entre o modelo instituído historicamente estabelecido para os encontros entre os profissionais da assistência, os destes com a gestão, e a proposta em questão. Salienta-se que tal modelo, que tende a promover a separação entre profissionais da assistência e da gestão, não opera apenas no entendimento da dinâmica operacional, mas se reproduz no funcionamento real dos serviços. Em suma, tais encontros mostram-se hegemonicamente formatados pelas práticas hierárquicas tanto na transmissão de ordens, tarefas e deveres, como no trato desigual dos conhecimentos e no desnivelamento dos lugares de saber-poder. As expectativas e as solicitações manifestas continuadamente para transmissão de conhecimentos técnicos, na busca pela segurança do agir a partir de um saber precedente, foram contrastadas com a perspectiva da experimentação da saúde mental nas concretudes dos serviços de saúde, das atividades grupais, das atuações nos territórios e da auto-observação diante destas.  Diferentes narrativas de participantes reforçaram os estranhamentos provocados pelas propostas metodológicas, ao tempo em que outros se reconheceram afins, em detrimento das experiências com os modelos tradicionais. Na via da busca de ferramentas para uma práxis que favoreça a construção dos conhecimentos a partir das demandas dos territórios, a problematização dos lugares de saber-poder e das dinâmicas grupais e organizacionais influentes, a experiência coletiva enquanto dispositivo de intervenção no trabalho e no cuidado, a vivência corporal para fomento de novas qualidades sensíveis, dentre outros, as propostas experimentadas encontraram gradientes variantes de porosidade. Vemos que tais gradientes versam sobre as produções subjetivas dos contextos em questão, ao mesmo tempo em que tratam de contextos maiores, principalmente quanto às formações em saúde e para além da instituição saúde. Contudo, temos percebido a gradual inserção dos cuidados territoriais em saúde mental nos processos de trabalho das equipes de saúde indígena. O crescente interesse em alguns serviços e profissionais da rede municipal, tanto para participar dos encontros propostos como para aderir e propor ações para fortalecimento da atenção psicossocial local, inclusive mostrando efeitos de contágios favoráveis a partir das propostas metodológicas, assim como a inserção das demandas da saúde indígena nos serviços da RAPS, dão ensejos para avaliações favoráveis. Isto também traz repercussões relevantes para a consequente problematização dos modos de cuidados interculturais, compreendendo a necessidade da singularização que a política da saúde indígena propõe em termos da atenção diferenciada.

As questões referentes aos processos de formação para construção de práticas antimanicomiais nos territórios de vida para além do controle a céu aberto, requerem revisões e reinvenções quanto aos modos de operar dos seus agentes. O uso das ferramentas e tecnologias da saúde tem sido tema corrente no campo da saúde mental e da formação. A busca e o exercício de metodologias e práticas que fomentem o modo ativo de operar a gestão e o cuidado, diferentes das formações pautadas em conteúdos e estritamente voltadas às políticas instituídas se faz ardor para o reposicionamento das lutas antimanicomias. A construção dos modos de cuidado e arranjos de trabalho atuantes nos cotidianos dos serviços de saúde cada vez mais requer a urgência da ousadia e da prudência.

 


Palavras-chave


Saúde mental em contexto indígena; metodologias ativas; cuidados antimanicomiais