Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A micropolítica do trabalho vivo em ato no campo da saúde mental
simone alves de almeida, Emerson Elias Merhy

Última alteração: 2018-01-26

Resumo


Este estudo, pretende aproximar as discussões sobre o trabalho vivo em ato e o campo da saúde mental, com o objetivo de elucidar os desafios da reforma psiquiátrica desde a perspectiva da micropolítica. Trata-se de uma revisão teórica, cuja a discussão faz parte da pesquisa de mestrado da autora.

O campo da saúde mental é marcado pela produção imaterial, pois ocupa-se, na maior parte das vezes, de problemáticas e sofrimentos não identificados no corpo biológico, mas evidenciados a partir da construção subjetiva dos sujeitos com quem se produz as práticas de cuidado. Poderíamos, então, afirmar que o campo da saúde mental centra-se sobre a dimensão micropolítica? Ou o que significaria falar em micropolítica no campo da saúde mental? Parece-nos que o campo da saúde mental não escapa dos grandes dilemas vividos pelo setor da saúde, inclusive na predominância das tecnologias leve-duras e duras sobre o governo de seus processos de trabalho. Entretanto, por sua construção histórica e social característica, carrega suas especificidades.

As pessoas que utilizam os serviços e ações da saúde mental são aquelas que menos correspondem aos valores dominantes na sociedade, as que foram historicamente afastadas e ainda são cotidianamente excluídas. Isto não significa pouco no fazer cotidiano construído entre equipes e usuários, familiares, comunidade, imaginário social, interesses econômicos. Os modos de produção predominantemente médicos da área da saúde também exercem seu predomínio no campo da saúde mental, cujas práticas centradas em saberes biomédicos e especializados. E os processos de trabalho, muitas vezes constituídos por lógicas instituídas, produzem o cuidado que será ofertado pelos trabalhadores na micropolítica de suas práticas, a partir de modelos prévios – o trabalho morto. No campo da gestão do trabalho, no Brasil de hoje, agrega-se de modo cada vez mais crescente o processo de terceirização e precarização do trabalho, o que gera, dentre outras coisas, a rotatividade de profissionais nas equipes, e que tem consequências dramáticas em um cuidado que é processual, centrado no vínculo, trabalho-vivo-dependente.

E os desafios do campo da saúde mental, também, envolvem o fantasma vivo e operante do manicômio. Embora o passado sombrio que envolveu a exclusão e a violência do encarceramento tenha sido, de algum modo, superado, ele ainda se apresenta de muitas formas, não menos nocivas. Os manicômios antigos que ainda restam, exercem forte poder sobre as Redes de Atenção Psicossocial em muitas regiões, além disso, há os manicômios modernos, que possuem novas facetas, o que os permitem proliferar com outros nomes e subterfúgios, burlando as leis que tentam garantir minimamente os direitos dos usuários.

Por outro lado, o principal desafio desse campo é o de superar a lógica manicomial que não se limita a um lugar físico, que não precisa de muros para aprisionar as subjetividades que escapam as normas convencionais. E essa é uma questão de dimensão micropolítica do campo da saúde mental. Assim, falar em micropolítica da saúde mental significaria, por exemplo, não se centrar na doença e nos conhecimentos dados a priori sobre o sofrimento do outro, bem como, não confundir manicômio com um lugar físico, pois, o manicômio é modo de subjetivação.

Conforme já indicado por Basaglia e Rotelli, referências da reforma psiquiátrica italiana, não bastaria acabar com os manicômios, sem mudar a forma como olhamos para a loucura. Já no contexto da reforma psiquiátrica brasileira em construção, Pelbart nos alerta neste sentido: tão urgente quanto libertar nossa sociedade dos manicômios é libertar o pensamento da racionalidade carcerária onde confinamos a loucura: o manicômio mental.  Para Pelbart, este era o desafio posto aos atores sociais que construíam as práticas alternativas de cuidado em saúde mental em nosso país: evitar que a ideia de uma sociedade sem manicômios se esgotasse em sua evidência primeira.

Acontece que as evidências que sustentam o manicômio o fazem pela demanda por lugares de encarceramento constituída de legitimidade social. O manicômio presente em nossa subjetividade demanda e deseja por formas de encarceramento, e não há lei antimanicomial capaz de reprimi-lo totalmente. Pelbart sugere que para construir uma sociedade sem manicômios não basta gritar palavras de ordem ou construir novas leis, embora elas sejam importantes, é necessário recusar o império da razão. A razão carcerária não seria aqui uma ideologia, mas antes, um modo de se encontrar com o outro, o outro na sua diferença, e a partir daí, de pensar, de produzir práticas sociais, e de se fazer o cuidado em saúde.

Lancetti, ao narrar as experiências iniciais da reforma psiquiátrica brasileira em Santos, como práticas que surgiram dotadas de alma antimanicomial e com vontade de experimentação, indica a emergência de práticas transformadoras da subjetividade dos trabalhadores, capaz de desconstruir as formações profissionais ao romper com os saberes instituídos, produzindo novas práticas, assim como, novos sujeitos sociais. Ao percorrer por experiências em andamento, Lancetti verifica a cronificação de muitos serviços e práticas que adotam para si formas rígidas de funcionamento, centrando-se em modelos terapêuticos especializados, colocando-se distantes da cidade e seus problemas, e assim, conclui que qualquer serviço corre o risco de se cronificar, reproduzindo modelos instituídos, perdendo potência de agir.

Mais adiante, no decorrer das experimentações e das dificuldades na efetivação cotidiana da reforma psiquiátrica, Lancetti  irá nos ofertar a ideia de plasticidade psíquica, importante para o que viemos chamando de território das tecnologias leves. A plasticidade psíquica é a capacidade de transformação do trabalhador em sua subjetividade, o que é imprescindível para lidar com a complexidade dos desafios cotidianos da saúde mental e com o impacto singular que eles produzem nos territórios existenciais de cada um, para, então, produzir novos olhares. A denominada “baixa exigência”, hoje constituída como uma necessidade para os serviços que se lançam por caminhos antimanicomiais, opera em alta exigência para os seus trabalhadores,   que precisam se desterritorializar e construir novos territórios de existência de maneira permanente. Desse modo, os trabalhadores da saúde mental reinventam constantemente seu campo de atuação à medida que nele, também, se reinventam.

Para autores como Emerson Elias Merhy, Laura Feuerwerker, Túlio Franco Batista, o trabalho vivo não pode ser totalmente capturado pelo trabalho morto, e por essa característica, o trabalho vivo tem a possibilidade de construir brechas e rupturas nos fazeres instituídos. Isso ocorre a partir dos encontros, na micropolítica dos processos de trabalho, em que o trabalhador é o principal agente de qualquer mudança. Assim, a subjetividade deve ser reconhecida como dimensão da produção do cuidado. Deste modo, entende-se que as mudanças não se dão por decreto, mas por produção de sentido entre seus trabalhadores, o que ocorre a partir dos encontros destes no mundo do trabalho e da vida.

A saúde mental é um campo de tensão permanente, devido aos seus tantos desafios. No entanto, reconhecer a dimensão subjetiva e o lugar dos encontros na gestão do trabalho nos aproxima da compreensão que, produzir cuidado antimanicomial pressupõe produzir novas relações societárias. Isso inclui perceber o cotidiano do cuidado como experimental e incerto, e a necessidade de produzir coletivos capazes de autoanálise, de solidariedade, de composição. O lugar das certezas, das respostas simples e produzidas a priori é o manicômio. O antimanicomial exige abertura à transformação, a reflexão permanente, o acolhimento à diferença: a produção de relações antimanicomiais nas mais diversas dimensões da vida.

 


Palavras-chave


micropolítica; saúde mental; trabalho vivo