Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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O que pode “Vir a Ser”?: tessituras de cuidado no Centro Especializado em Reabilitação de São Bernardo do Campo (CER IV/SBC).
Valéria Monteiro Mendes, Larissa Ferreira Mendes dos Santos, Paula Bertolucci Alves Pereira, Laura Camargo Macruz Feuerwerker

Última alteração: 2018-01-26

Resumo


Este texto integra a pesquisa Avalia quem pede, quem faz e quem usa e se inscreve nas análises da Rede de Observatórios Microvetoriais de Políticas Públicas em Saúde e Educação em Saúde, por meio da qual temos explorado dois planos analíticos relacionados à produção das Políticas – a genealogia e a análise da Política como dispositivo. No primeiro, consideramos que estas análises permitem o entendimento de que não há linearidade na elaboração dos problemas e dos conceitos para seu enfrentamento, sendo necessário conhecermos as forças, as apostas, os sentidos e os valores a eles relacionados em diferentes momentos, visando à invenção de ações que enfrentem o instituído. Sobre o segundo, temos como pressuposto que os atores relacionados à elaboração de uma Política fabricam micropoliticamente no cotidiano distintas e imprevisíveis movimentações, independentemente do texto da Política (ainda que este fabrique intensos processos de subjetivação). Apostamos na fabricação de outras interrogações e de formas de agir-pensar em oposição ao modo hegemônico de construir o conhecimento, as pesquisas, o trabalho em saúde, especialmente por assumirmos como questão a produção do cuidado na diferença e em ato. Nosso propósito é partilhar as tessituras com as quais nos encontramos ao analisarmos o modo como a Política Nacional de Atenção à Pessoa com Deficiência operou como dispositivo em São Bernardo do Campo quanto à proposta de organização do cuidado à pessoa com deficiência e aos arranjos desenvolvidos pela Secretaria Municipal de Saúde, do que decorreu a construção de um CER IV em rede e não regulado e de arranjos singulares como o “Vir a Ser”. Adotamos como metodologia a cartografia, na qual o método é o encontro. Nossa prática não consiste na definição e representação de um objeto, pois acompanhamos o processo em plena rota, seus efeitos, (re)orientações, desvios, variações. Trata-se de uma investigação que se faz na ocupação/povoamento de um território e que implica no traçado de um (in)certo contorno, visando localizar as linhas que compõem um dispositivo (visibilidade, enunciação, força e subjetivação), bem como suas conexões e agenciamentos estabelecidos com o seu “fora”. Assim, acompanhamos as questões que rondaram alguns trabalhadores em específico do CER: Quem é do CER? Quem é do CAPSi? Quem pertence aos dois serviços?. Estas interrogações mobilizaram a invenção de respostas que ultrapassaram os caminhos construídos estritamente pelos diagnósticos no campo da saúde mental, particularmente quanto ao autismo. Deslocamento do instituído que engendrou a criação de um dispositivo instaurado na intersecção de dois dispositivos de cuidado (CER e CAPSi). Disso, a “Estratégia Vir a Ser” (como era denominada) foi fabricada segundo uma demanda interna do CER quanto à necessidade de produzir o cuidado de crianças com risco psíquico encaminhadas ao serviço e que não poderiam ser acolhidas como “usuárias” por não apresentarem deficiências, bem como quanto à demanda de crianças com alguma deficiência e que apresentavam tal risco psíquico. Incitadas por tal desconforto que atravessava os profissionais de distintas equipes, as ações relativas à “Estratégia” foram disparadas por duas fonoaudiólogas da equipe de deficiência auditiva. Paulatinamente constituíram-se composições com profissionais de distintas equipes do CER (fonoaudiólogas, terapeutas ocupacionais, psicóloga) e de um CAPS de SBC (psiquiatra e pediatra). Para além da demarcação de um lugar para estas crianças segundo uma CID (que impõe limites e barreiras e que produz segregações), tais profissionais sentiam-se implicados em favorecer a vivência de experiências voltadas à fabricação daquelas existências no serviço e fora dele. Semanalmente, os profissionais da “Estratégia” desenvolviam atividades no CER e em distintos espaços da cidade (públicos e privados, como em um shopping center), de modo que as crianças e suas famílias experimentassem a ocupação da cidade e a produção do cuidado como algo que pertence a todos (e não apenas aos profissionais de saúde) e que não está circunscrito aos muros de um serviço (o cuidado como aquilo que não tem lugar para ocorrer por ser em ato). Do contato com os trabalhadores visibilizamos uma transversalidade da “Estratégia” relacionada às equipes de reabilitação auditiva, reabilitação infantil, deficiência auditiva, estimulação precoce, neuro-infantil, deficiência intelectual, justamente porque as distintas profissionais da “Estratégia” também integravam e vivenciavam as questões sobre o tema cada qual em sua equipe. Isso parece ter favorecido outras possibilidades de ofertas de cuidado e, no limite, contribuído para distintas conversações no CER e para além dele (nas equipes de cada profissional da “Estratégia”, bem como entre os profissionais da “Estratégia” com a gerência do CER, com os trabalhadores de outras instituições e serviços e com as famílias e cuidadores). Tal possibilidade de aposta pelos profissionais do CER deveu-se à fabricação do serviço segundo os pressupostos de produção do cuidado compartilhado entre os pontos da rede e de composição de arranjos interprofissionais que incluía familiares e cuidadores, o que possibilitou a realização de distintas ações dentro e fora do CER orientadas para as necessidades das pessoas. Deveu-se ainda pela composição dos elementos estruturantes do serviço (acolhimento não regulado/porta aberta, atendimento interdisciplinar e o tema da alta – trabalhada processualmente desde a entrada do usuário no serviço). Estes movimentos que possibilitaram a construção do “Vir a Ser” e de outros arranjos de cuidado são constitutivos de um processo de qualificação da rede de atenção (2009 a 2016) ocorrido no âmbito da recomposição da atenção ambulatorial especializada dado o contexto de fragmentação da oferta de reabilitação, de invisibilidade para as necessidades da população com deficiência e de não previsão de implantação de um CER no município. Dos efeitos recolhidos desta ampliação da vida pela “Estratégia”, destacamos a possibilidade de experimentação de um corpo outro, que acontece como força e expressão de sua singularidade, bem como a criação de formas de resistência às hegemônicas práticas normalizadoras de condutas das crianças ditas autistas. Práticas essas que reduzem e circunscrevem esses corpos à marca identitária do espectro do autismo e que, com o dedo em riste, apontam a diferença enquanto não potência. Retomando a questão do título, inspirada no pensamento espinosano, destacamos que o intuito não foi o de respondê-la a partir da experiência do “Vir a Ser”. Interessou-nos partilhar a constatação de que os profissionais produzem invenções (com a sensibilidade e o rigor requeridos) quando têm como questão posicionar as necessidades das pessoas no centro de suas práticas, para além das determinações do texto da Política. Isso reafirma que as movimentações fabricadas pela gestão – como ocorreu quanto ao projeto político do serviço, aumento da governabilidade dos trabalhadores, inclusão dos usuários e seus familiares no projeto de cuidado e produção de interlocuções que ultrapassaram o CER – são decisivas para a fabricação de ações que considerem as múltiplas questões e possibilidades relacionadas ao modo de conduzir a vida pelas pessoas. Estes aspectos chamam atenção para o fato de que os movimentos produzidos em SBC (2009-2016) privilegiaram o envolvimento de distintos âmbitos da atenção (básica, especializada, hospitalar) e de outras instituições e secretarias (como a de esporte e lazer – “Projeto de bem com a vida”), apesar de alguns desafios e tensionamentos que permaneceram, sobretudo, considerando o avassalador retrocesso produzido no primeiro ano da gestão municipal vigente (desmonte de projetos, demissões em massa, redução da governabilidade dos trabalhadores), deliberadamente ancorado nos pressupostos próprios da governamentalidade biopolítica que nos atravessa.

Palavras-chave


cartografia;análise-de-política-como-dispositivo;autismo