Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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O APRENDIZADO SOBRE AS EMOÇÕES EM UM CONTEXTO DE TREINAMENTO MÉDICO: uma etnografia sobre as práticas médicas em um hospital universitário em Salvador, Bahia.
Rosana dos Santos Silva

Última alteração: 2018-01-24

Resumo


A questão “como a aprendizagem acontece?” demarca as investigações sobre todo e qualquer aspecto da vida. Com os campos da biomedicina e das emoções não é diferente. O objetivo deste trabalho é apresentar minha pesquisa de doutorado, que se integra aos estudos sobre Ciências Sociais em Saúde e Antropologia das Emoções. Esta investigação, cuja proposta é analisar a aprendizagem como parte das práticas sociais, tem como problema de pesquisa: Como o aprendizado sobre as emoções acontece em um contexto de treinamento médico, o hospital universitário? Atenta-se para o universo das práticas, às relações entre os atores que dividem a cena social no hospital mostrando como estão engajados neste aprendizado, e para os procedimentos interpretativos envolvidos. O interesse está na aprendizagem como/ na prática, já que a ideia central não é apenas saber o que se aprende, mas como se aprende. Os objetivos específicos do estudo são: Identificar o que é considerado emoções em um contexto de treinamento médico; Descrever como se apresentam as emoções neste contexto; Verificar quando as emoções (do médico e/ou do usuário/usuária) influenciam na decisão médica; e Compreender como acontece o aprendizado tácito e o aprendizado explícito sobre o lidar com as emoções entre aprendizes e preceptores médicos. Esta investigação possui um desenho metodológico qualitativo e o trabalho de campo foi realizado na enfermaria de um hospital universitário, referência em alta complexidade do estado e integrante do SUS em Salvador-Bahia. A escolha por esta instituição hospitalar se baseou em dois critérios. O primeiro deles é a sua definição enquanto unidade docente-assistencial que desenvolve atividades de formação e de pesquisas clínicas e epidemiológicas; e o segundo critério é o seu caráter público, que faz com que a prática médica esteja marcada por maiores tensões sociais, econômicas, políticas, em relação a um hospital privado, que podem repercutir na formação médica. Participaram da pesquisa, fundamentalmente, internos, alunos de graduação em medicina que ainda não chegaram no internato das disciplinas de Clínica, residentes e preceptores médicos que atuam na enfermaria. A obtenção e produção de dados foram realizadas por meio do trabalho etnográfico através da observação das visitas médica e interdisciplinar, passagem ao leito, apresentação de caso e observação dos comunicados médicos, analisando práticas concretas experienciadas no contexto da investigação. Este material compôs o registro do diário de campo, em que foram compiladas ações individuais e coletivas, processos significativos que envolvem a complexa dinâmica relacional do aprendizado, a descrição dos contextos em que a ação acontece, a linguagem utilizada pelos atores sociais no campo, o que estes definem como interessante, problemático sobre as emoções no hospital. Para efetivar a triangulação dos dados outra técnica de coleta de dados adotada foi a realização de entrevistas semi-estruturadas com internos, alunos de graduação em medicina das disciplinas de Clínica, residentes e preceptores médicos. A construção deste estudo se justifica primeiro, pela incipiência de pesquisas que abordem o aprendizado sobre emoções na formação médica, uma vez que parte das investigações afirma que esta questão não é /ou é pouco contemplada na formação, tomando apenas o arranjo curricular como objeto de atenção, abrindo mão das práticas, que atravessam o processo de formação e da análise da situação em que a experiência emotiva acontece; e segundo, pela contribuição que uma abordagem teórico-etnográfica pode ter para enriquecer a compreensão sobre a aprendizagem em um contexto de práticas como o hospital, uma instituição socializante, que se tornou a partir do séc. XVIII um dispositivo fundamental de ensino e tratamento. Os resultados da pesquisa apontam que os alunos do internato e da graduação de medicina das disciplinas de Clínica e os residentes, após experienciarem no encontro clínico um conflito emotivo, afirmam que não estão sendo/foram preparados na sua formação para lidar com as emoções do paciente. Este discurso ganhava eco na cena clínica que implicasse ameaça, sofrimento e a escuta das emoções: a raiva diante da impossibilidade de cura, a surpresa ao receber o comunicado de um diagnóstico, a tristeza diante do afastamento da família na internação, o medo do paciente de fazer uma cirurgia. Mas a frase: “não somos preparados  (a conjugação do verbo ser no plural, remetendo-se a um nós, sinalizava que se tratava também de um fenômeno que tem dimensão coletiva)  para lidar com estas experiências na formação” vinha frequentemente acompanhada pelas emoções do médico ou aprendiz, que apontavam para uma tensão estruturante entre saber e sentir na prática da medicina. A tensão entre a busca do saber e as emoções despertas neste processo atravessa o aprendizado e a prática médica, ganhando relevo na formação da identidade profissional e na aquisição do habitus do trabalho médico. Os achados etnográficos indicam que, embora haja essa percepção de não preparação na formação, nas observações dos seus sistemas de práticas: as visitas médicas, apresentações de caso, os encontros clínicos, identificou-se na categoria médica um repertório de diferentes práticas frente à experiência emotiva: dizer ao paciente para parar de chorar, lançar mão do discurso religioso, silenciar, ser empático, antecipar a finalização do encontro clínico e voltar o foco do atendimento para a informação técnica. Existe então um aprendizado sobre o lidar com as emoções, que orienta as práticas no hospital. Estas práticas eram compartilhadas, revelavam uma história de saber-fazer, inventando cotidianamente soluções para as questões concretas que a experiência emotiva impunha naquele contexto e apontavam para o desenvolvimento de habilidades. Verifica-se então que embora a medicina tenha caminhado na direção de uma crescente racionalidade científica, nela seria possível identificar uma compreensão prática que a mantém ligada ao contexto social em que ela se dá, ao mundo da vida. Mesmo buscando intervir sobre um eixo bastante limitado: os aspectos biológicos da doença, a prática médica abarcaria mais dimensões do que esta pretenderia lidar: a experiência, os valores, julgamentos, as emoções, haveria uma série de supostos que os médicos e aprendizes trazem e/ou compartilham com outros na prática médica, que teriam um espaço, mesmo que reduzido, tornando irrealizável o ideal de cientificidade pautado na racionalidade, neutralidade e objetividade. A proposta desta pesquisa foi construir um caminho alternativo as análises panorâmicas que tomam a biomedicina e as emoções como realidades já dadas, para entender os modos como são aprendidas, sem perder de vista o que os atores envolvidos têm a dizer e o universo das práticas. Este percurso está ancorado na premissa de que os atores sociais estão no movimento de interpretação da vida. A compreensão não lhes é alheia, na medida em se configura em uma condição do nosso ser no mundo. Isso significa que constroem significados sobre os eventos com que estão envolvidos, os quais deixam suas marcas inscritas em seus engajamentos práticos com o mundo.


Palavras-chave


biomedicina, emoções, aprendizagem