Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Experiências Intersetoriais de Desinstitucionalização: territórios da construção do cuidado em liberdade.
Ana Carolina Rios Simoni, Claudia Tallemberg, Carolina Nunes Port, Károl Veiga Cabral, Paula Emília Adamy

Última alteração: 2018-01-26

Resumo


Este trabalho aborda uma experiência na gestão estadual da Política de Saúde Mental do RS no período de 2012 a 2014, ao nos depararmos com um fenômeno entranhado na maior parte das regiões do estado: o asilamento de pessoas com diagnósticos psiquiátricos em instituições de longa permanência para idosos. Cachoeira do Sul, município situado na região central do Estado, apresenta um quadro emblemático desta situação, ao sediar dezenas de instituições de longa permanência para idosos (ILPI), sem alvará sanitário, com centenas de pessoas (em torno de 650) oriundas de cerca de 62 municípios do Estado, cujas condições de vida desumanas lembram, sem sombra de dúvida, os locais mais terríveis do encarceramento manicomial. Boa parte destas pessoas foram encaminhadas para estes locais por serviços da rede de saúde e de assistência social dos municípios. Nuances desta realidade concernem a uma diversidade de outros municípios do RS, colocando perguntas para as políticas públicas e para a Justiça.

Em articulação com o Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos do Ministério Público Estadual, a Secretaria de Estado da Saúde estabeleceu, em 2014, uma série de ações de desinstitucionalização destas pessoas, das quais participamos como gestoras e trabalhadoras de políticas públicas, que envolveram a utilização da metodologia do Censo Clínico Psicossocial (CCP) e a articulação das redes de Saúde e Assistência Social para a construção de planos terapêuticos singulares de desinstitucionalização. O Censo Clínico Psicossocial é uma ferramenta-dispositivo de gestão e do cuidado, utilizado pela Política Estadual de Saúde Mental do RS, que tem por uma de suas funções dar a conhecer a situação de saúde e psicossocial de pessoas institucionalizadas sob o argumento da doença mental, resgatando a história de vida, as condições de dependência e autonomia para a organização da vida cotidiana, as relações interpessoais e familiares, mapeando recursos sociais e econômicos, com a finalidade de subsidiar processos singulares de desinstitucionalização. Estas histórias, condições e recursos possíveis eram recolhidos no contato direto com as pessoas institucionalizadas, familiares, trabalhadores das instituições e das redes do município, leitura de prontuários – que pouco ou nada diziam sobre a vida concreta das pessoas institucionalizadas –, e no acompanhamento do cotidiano das institucionalizações. Como ferramenta-dispositivo, em contraposição à lógica tecnicista da aplicação de questionários e instrumentos de coleta de dados que primam pela precisão e controle das circunstâncias de seu uso, o CCP operou de forma aberta ao inusitado, permeável às realidades em que adentramos e dos encontros que ali aconteciam. Nesta lógica processual, abriam-se territórios de construção da expressão de singularidades potentes e silenciadas pelos processos manicomiais. Mesmo pessoas que literalmente não falavam, constituíram formas de se expressar à medida que a metodologia do censo se modificava para acolher estas diferentes formas de contar histórias de vida e de desejar outros futuros. Assim, o CCP operou como um dispositivo deflagrador de processos de interferências no socius e na produção da vida.

As informações registradas a partir do CCP deram visibilidade para algo que se camuflava nos laudos psiquiátricos das pessoas institucionalizadas: elas tinham histórias marcadas por inúmeras formas de exclusão e de violação de direitos, mais ligadas a estigmas forjados em contextos de preconceito, nos quais os diagnósticos psiquiátricos surgiam como argumentos para internações vitalícias, que atendiam aos interesses do mercado da loucura, agora atualizado, na contramão das políticas públicas que foram, progressivamente, ao  longo de uma década e meia desinvestindo no setor de contratação de serviços privados complementares. Mulheres com histórico de violência, homens com história de décadas de trabalho precário no campo no cultivo do fumo, pessoas com deficiência mental ou física oriundas de famílias muito pobres, adultos que foram crianças institucionalizadas em instituições de assistência social, onde enlouqueceram, tiveram sua existência medicalizada e passaram a ser considerados incapazes para a vida em sociedade. Este era o retrato das vidas aprisionadas, sob o argumento da proteção e do cuidado, nas instituições irregulares para idosos em que se realizou o CCP. A lógica do capital e do mercado produziu naquele contexto uma necessidade de intervenção social e clínica ardilosamente construídas nas bordas das legislações vigentes, sustentadas, paradoxalmente, com recursos públicos, oriundos de estratégias para produção de equidade, apoio à cidadania e reinserção social como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e Programa de Volta para Casa (PVC), que eram utilizados para o pagamento das mensalidades dos asilos, pervertendo seu mandato ético, social e político. Neste sentido, desinstitucionalizar também é questão de visibilizar os marcadores de poder dos novos procedimentos manicomiais.

O desafio da desinstitucionalização se renovava a cada ato, seja quando nos encontramos com os preconceitos de proprietários e vizinhança de imóveis que sediariam residências terapêuticas em implantação, seja quando funcionários das instituições asilares sob nossa intervenção defendiam com unhas e dentes seus estabelecimentos. O argumento da morte como possibilidade sempre surgia nestes contextos: “se saírem podem morrer”; “aqui é a casa deles”. Proteger a vida biológica era o que interessava: mas qual vida? Uma vida capturada por um dispositivo arquitetônico-discursivo-institucional que massacra a singularidade com a organização repetitiva do tempo e do espaço, a captura nosográfica, a interpretação patologizante e o olhar segregador do dispositivo psiquiátrico.

Os processos do CCP tornaram ainda visível o fato de que os trabalhadores das políticas públicas e do direito continuam sendo forjados na lógica moral e identitária, cujo foco é a aquisição de técnicas de adaptação dos sujeitos aos ideais sociais. Reféns de seus preconceitos e da imagem congelada de seus parâmetros de atuação, muitos deles têm medo de ousar apostar no encontro com a alteridade e acabam por reproduzir estereótipos sociais com os quais se defendem das singularidades. Nesse contexto, a interdição ao diálogo, pela imputação de uma sobrecarga de tarefas no cotidiano de trabalho e pelo controle dos tempos da atuação do profissional, se fez presente incontáveis vezes, cristalizando ainda mais as relações de saber-poder e hierarquizando suas práticas, o que nos pôs a pensar sobre os modos como as prescrições disciplinares atingem não apenas os usuários, mas também os agentes das ações, produzindo efeitos de coisificação de ambos os lados.

Por outro lado, nas reuniões e ações intersetoriais onde se abordavam os casos de desinstitucionalização em andamento, com participação do Ministério Público do RS, percebemos os efeitos formativos destes encontros híbridos de intersetorialidade, na direção dos atores envolvidos. Espaços híbridos, que colocam em contato saberes heterogêneos, superfícies intersetoriais e territoriais que se perturbam, se afetam, produzem ressonâncias, desacomodam, dando suporte à produção de lugares de existência para o que, em outro contexto, seria facilmente tomado no quadrante do anormal. Nestes itinerários intersetoriais da desinstitucionalização, não se trata de tomar a experiência singular no registro dos saberes das ciências da saúde, mas de acolher o ponto em que ela desconstrói os saberes vigentes, ao mesmo tempo que cria novos modos de trabalhar nas políticas públicas. Assim, este relato se constitui como uma forma de documentar um momento crucial da Reforma Psiquiátrica no RS, ao tomar a desinstitucionalização das novas/velhas instituições asilares como dispositivo de educação permanente em saúde, mas sobretudo busca testemunhar processos de subjetivação e produção da vida, os territórios do cuidado em liberdade, desmontando o arranjo jurídico-assistencial-sanitário e político que insiste em produzir a morte em vida de singularidades dissonantes sob o argumento da proteção social e do cuidado.


Palavras-chave


Desinstitucionalização; Censo Clínico Psicossocial; Cuidado em Liberdade