Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Sentidos do religioso na atenção à Saúde Mental: Perspectiva de profissionais e usuários de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS II) do Sertão do Vale do São Francisco
Grécia Rejane Nonato de Lima, Luciana Duccini

Última alteração: 2018-01-26

Resumo


Este trabalho se baseia numa pesquisa qualitativa, etnográfica, em andamento, vinculado ao Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI) da Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF. Busca-se compreender os sentidos acerca do religioso emergentes das práticas discursivas de usuários e profissionais dos Centros de Atenção Psicossocial II (CAPS) de duas cidades do Vale do São Francisco.

Ressalta-se que os termos religião e religiosidade/espiritualidade são considerados como equivalentes aqui, embora possam ser traçadas distinções conceituais entre ambos.

Sabe-se que o sofrimento psíquico, nas sociedades que convencionamos chamar de “modernas”, foi classificado e, consequentemente compreendido, no âmbito das patologias. Lentamente, na passagem do Renascimento europeu à chamada Modernidade, a “loucura” passou de manifestação sagrada, por vezes “possessão demoníaca”, à desrazão e à “doença mental”. Sob o prisma de “doença”, a loucura necessita ser “tratada” e “curada”, visão que veio a comprometer os modos de ser que se afastam do padrão imposto pela sociedade. Dessa forma, o tratamento asilar e a terapêutica moral sustentou, durante décadas, uma lógica de cuidado em que o sujeito em intenso sofrimento psíquico ficava excluído não apenas fisicamente, mas também sem condições de falar de si. Nestes processos é praticamente impossível separar visões de mundo religiosas dos ideais de sujeito subjacentes ao discurso patologizante.

Na esfera das Políticas Públicas, em meados do século XX, em diálogo com a área de Direitos Humanos, emergiram questionamentos a tal modelo de tratamento. Surgiu outra perspectiva que buscava “resgatar o sujeito perdido”, até então nomeado apenas por sua “doença”.  No Brasil, entre as décadas de 70 e 80, foi constituído um processo denominado Reforma Psiquiátrica que, na verdade, propunha mudança em toda a lógica de cuidado e não apenas “corrigi-la”. Vale evidenciar que a Reforma Psiquiátrica tem caráter processual, não importando um fim específico a ser atingido, mas seu desenrolar, o que reverbera no abandono de um ideal curativo. Postula-se assim, a busca gradual da autonomia possível para cada sujeito acompanhado.

Para que essas mudanças acontecessem, surgiram serviços como os CAPS, que têm posição estratégica na rede de saúde. Um dos princípios na estruturação dos serviços interessa diretamente a este trabalho: capacidade de escuta de todos os  profissionais, bem como sua configuração em rede com vistas a aproximar o cuidado do território existencial dos sujeitos atendidos. Nessa perspectiva, torna-se patente a exigência posta aos profissionais de uma capacidade para ouvir e acolher especificidades dos universos sociais de onde vêm os usuários dos serviços. Universos estes perpassados por dimensões culturais, subjetivas, políticas e também religiosas.

As relações entre religião, saúde e bem estar já se tornaram parte do senso comum, tanto quanto têm sido objeto de estudos das ciências humanas e sociais, em especial, na área da antropologia. Contudo, as possíveis influências mútuas entre religiosidade/espiritualidade e saúde mental têm recebido conotações variadas em diferentes épocas, países, áreas de saber e em diferentes grupos religiosos, ora destacando os seus aspectos positivos, ora os negativos.

Alguns autores indicam que há uma espécie de “senso comum” que, embebido de cientificismo, tende a sustentar uma visão negativa da religião, em especial no campo da Saúde Mental. Evidentemente, tais noções podem se envolver no desenrolar dos processos terapêuticos e na elaboração de projetos de cuidado em saúde mental, configurando um aspecto merecedor de maior atenção.

De fato, embora as relações entre religiosidade/espiritualidade e saúde mental sejam largamente reconhecidas, envolvendo até mesmo a revisão dos manuais psiquiátricos para diagnóstico de transtornos mentais, as diversas formações profissionais para atuação na área não acompanharam estas transformações, manifestando uma lacuna em relação ao cuidado desenvolvido. Há indícios de que a formação profissional não tem preparado adequadamente as equipes para responder a tamanho desafio, em especial no que diz respeito à vivência da religiosidade, tão marcada por pré-noções, sejam essas negativas ou positivas. Isto coloca a importância de compreendermos, de maneira aprofundada, quais sentidos emergem quando, no atendimento psicossocial, os usuários apresentam experiências e narrativas marcadas pelo religioso.

O trabalho proposto enquadra-se na perspectiva do construcionismo social no sentido em que considera que os discursos não apenas descrevem a realidade em que se vive, mas participam de sua construção. Compreende-se que os sentidos são compreendidos como elaborações discursivas conjuntas, que sujeitos, social e historicamente situados, constróem processualmente e em copresença. Dessa forma, o encontro clínico e as demais interações no serviço de atenção psicossocial são instâncias privilegiadas para a observação das questões almejadas.

A imersão em campo iniciou no mês de novembro de 2017, ou seja, está em fase de aproximações iniciais com usuários e profissionais e o tema tem sido disparado e conversado, ainda aos poucos. Tem se buscado familiarizar os interlouctores com a presença da pesquisadora para reduzir ao máximo o estranhamento com sua assiduidade nos serviços, assim como garantir que todos os participantes tenham conhecimento dos  seus objetivos no local, construindo um processo de consentimento dialógico. Como forma de sistematização das observações, as visitas tem sido registradas em diários de campo.

Devido a pesquisa ainda não estar concluída, serão apresentados dados iniciais e primeiras impressões. O CAPS II é um serviço de portas abertas, funciona de segunda a sexta-feira em horário comercial e atende demanda de adultos com intenso sofrimento psíquico. Estes recebem atendimento realizado por equipe multiprofissional que envolvem atividades diversas, coletivas (sejam elas: passeios, grupos terapêuticos, grupos informativos, etc) e atendimentos individuais (consultas com psiquiatra, acompanhamento psicológico ou orientações específicas a respeito de direitos sociais).

Os interlocutores, sobretudo os usuários, têm se interessado pelo tema, chegando a se admirar que uma pesquisa possa conversar sobre tal conteúdo. Tem sido possível observar que os usuários em geral levam para o serviço, principalmente para os grupos terapêuticos, aspectos vivenciados nas crenças religiosas do dia-a-dia, sobretudo quando se tratam de práticas mais amplamente aceitas pela maioria, a exemplo de crenças relacionadas ao cristianismo, em especial os cultos evangélicos. No entanto, outros rituais e crenças não tem aparecido de modo expontâneo. Um dos usuários disse que gostaria de falar sobre o assunto, mas teme a forma como  receberiam sua vivência e ritos no candomblé, por isso, prefere falar em particular e não se identificar em momentos coletivos.

O tempo previsto da inserção em campo é de seis meses. Está sendo utilizada a observação participante, e serão realizados grupos narrativos com usuários e profissionais selecionados ao longo do trabalho, sendo um total de doze interlocutores por serviço, compostos separadamente um por usuários e outro por profissionais. Como caminho interpretativo serão utilizados Mapas dialógicos como estratégia de visibilização dos discursos das observações e dos grupos.

A dissertação ao final do estudo pode contribuir com uma reflexão sobre a formação de profissionais, particularmente quanto às exigências da humanização e às dificuldades de posicionamento frente aos discursos apresentados pelos usuários, de modo que aspectos importantes da sua existência não sejam ignorados por não haver “espaço” para eles na escuta e acolhimento.

Acredita-se que este tipo de estudo colabore com os princípios da Reforma Psiquiátrica, principalmente em suas dimensões sóciocultural e técnico-assistencial que, sem dúvidas, refletem nas prática do cuidado, propiciando assim uma visão mais ampla do que vem a ser Saúde Mental e possibilidades de intervenção.

 


Palavras-chave


Religioso; Saúde Mental; Práticas discursivas