Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A sala de espera como dispositivo de escuta e produção de saúde no contexto da Defensoria Pública.
Mariana Tavares Cavalcanti Liberato, Mariana Tavares Cavalcanti Liberato, Mariana Tavares Cavalcanti Liberato, Mariana Martins Gonçalves, Mariana Martins Gonçalves, Mariana Martins Gonçalves

Última alteração: 2018-01-26

Resumo


O presente trabalho parte da premissa de que o trabalho em saúde não está restrito à rede de atenção sanitária stricto sensu e que a prática da escuta e do acolhimento das vulnerabilidades psicossociais pode ser realizada em equipamentos outros, tendo como objetivo a produção de saúde e a garantia de direitos e dignidade. Pautados por essa perspectiva, em 2017, foi criado o projeto de extensão Promoção de arte, saúde e garantia de direitos (PASÁRGADA), vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).

O objetivo geral do projeto é de criar espaços de intervenções e construção de conhecimento da Psicologia na interface com os campos da Saúde Coletiva, dos Direitos Humanos e das Políticas Públicas, articulando-se às dimensões de ensino e pesquisa. Neste sentido, além de pôr em prática a premissa citada anteriormente, o projeto visa, também, a problematizar a inserção da Psicologia em contextos sociais diversos, no que se refere aos seus limites e possibilidades a partir da perspectiva do cuidado e da clínica ampliada. Busca, ainda, fomentar a construção de conhecimentos teórico-metodológicos a respeito das políticas públicas na interface entre saúde e direitos humanos, assim como incentivar, na formação discente, o debate acerca da ampliação das práticas clínicas em outros territórios.

Apesar de várias mudanças ocorridas na formação em Psicologia nos últimos anos, observamos que a discussão acerca da promoção da saúde e de outras formas de intervenções, que não sejam as da clínica tradicional, ainda são entendidas, muitas vezes, como formas menores ou menos importantes na atuação profissional. Por outro lado, contudo, percebemos que os saberes e práticas psi têm sido convocados a comporem outros modos de cuidado, atravessados pela interlocução com campos disciplinares diversos e baseados em uma perspectiva psicossocial.

Neste sentido, apresentamos a experiência que realizamos em parceria com o Núcleo de Atendimento ao Preso Provisório e Vítima de Violência (NUAPP), da Defensoria Pública do Estado do Ceará, de acolhimento dos usuários desse serviço, a saber: especialmente, familiares de pessoas que estavam presas provisoriamente e que buscavam o NUAPP para atendimento jurídico. Antes, porém, de nos determos mais especificamente no trabalho promovido, é importante contextualizarmos a demanda por nossa intervenção.

O público atendido pelo NUAPP caracteriza-se, principalmente, por mulheres (mães, companheiras, avós...), de baixo poder aquisitivo, que, muitas vezes, são ou tornaram-se arrimos da família. Foi-nos relatado pelos Defensores Públicos e pelos profissionais técnico-administrativos que, de modo recorrente, os usuários do serviço apresentavam queixas em relação ao desgaste emocional e psicológico pelo qual estavam passando. Os profissionais técnico-administrativos, especialmente, diziam ter dificuldades em lidar com as expressões de sofrimento e choro que, muitas vezes, apareciam. Já os Defensores mostravam preocupação em tornar o ambiente da Defensoria um lugar de acolhida e interseção de redes de suporte.

O NUAPP já havia contado com uma equipe de atendimento psicossocial (com profissional de Psicologia e Serviço Social) durante um ano, mas por questões de ordem administrativa, não existia mais esse trabalho. Além de acolhimento a casos mais específicos, tal equipe realizava encaminhamentos, visitas domiciliares e apoio aos profissionais do núcleo.

A partir do mapeamento desse cenário e dos objetivos e possibilidades do PASÁRGADA, delineamos algumas ações. A principal foi a implementação da metodologia da sala de espera para fazer uma escuta pontual aos usuários que assim desejassem. A partir desse momento de acolhimento, eram feitos encaminhamentos para a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e para a rede de assistência social (CRAS e CREAS), dentre outras.

Ao final do primeiro semestre de 2017, foi elaborada uma cartilha informativa com o endereço, telefone e localização no mapa de todos os dispositivos da RAPS, os CRAS e CREAS de cada Secretaria Regional, além do contato de clínicas-escolas que prestavam atendimento psicoterápico gratuitos na cidade e que fossem considerados relevantes de acordo com os encaminhamentos comumente realizados. Esse instrumento foi elaborado, também, para que a própria equipe do NUAPP pudesse fazer os encaminhamentos quando julgassem necessário.

Para tanto, foram ofertadas oficinas informativas com a equipe profissional do núcleo, explicando como funcionava essas redes de atenção, bem como uma sensibilização acerca da população mais vulnerável para a qual eles prestavam assistência. Buscou-se, ainda, realizar momentos de cuidado com o cuidador, através de oficinas mais vivenciais.

As atividades realizadas no NUAPP foram interrompidas no segundo semestre de 2017, haja vista questões burocráticas relacionadas ao estabelecimento do convênio entre as duas instituições (UFC e Defensoria), mas tais intervenções nos deixaram muitas marcas e nos fazem refletir acerca da necessidade de engendrar espaços de cuidado para os usuários e trabalhadores, que lidam diariamente com adversidades de todas as ordens, e que, muitas vezes, padecem sozinhos por terem que lidar com um cotidiano de histórias de violência, exclusão e injustiça.

Histórias como a da senhora que, ao ser atendida, tem uma crise de choro convulsiva e diz que se treme de fome, mas de vergonha também. Nunca imaginou ter que passar por aquela situação, embora soubesse que o filho mais novo já andava “fora da linha”. Era catadora de lixo, morava numa ocupação e criava uma filha e uma neta. Era esse seu filho quem lhe ajudava com as despesas da casa. Não conseguia entender as orientações técnicas dadas e se mostrava ainda mais preocupada pelo fato de não poder contar com ninguém da família. Seus outros filhos diziam que ela não deveria fazer nada por aquele que se encontrava preso. Fazia uma semana que ela o tinha visitado no presídio. Encontrou-o doente, em condições precárias de habitação e higiene. Não sabia o que fazer, nem a quem recorrer. Quando o profissional que a estava atendendo levantou, ela confidencia que estava doente. Já tinha ido ao posto, mas a consulta tinha sido remarcada. Depois de ser atendida, agradece as informações e a conversa. Disse ter sido bom ser ouvida, sem julgamento.

Outro caso foi de uma mulher, que ao mesmo tempo em que ia buscar auxílio jurídico para um parente preso, também pedia ajuda por ter sido vítima de violência desse mesmo parente. Paradoxo sofrido e que nos mobilizava a uma escuta atenta, sensível. Houve, ainda, o caso da família que foi vítima de violência por parte do Estado. Teve a casa invadida por motivo torpe. Na realidade, uma discussão de vizinhos levou à situação. Pelo medo, abandonaram a casa com tudo dentro. A vida parecia suspensa. A quem recorrer nessa situação?

Essas e outras tantas histórias ouvidas e acolhidas pelo projeto nos mostram a necessidade de produzir espaços de cuidado nas interfaces dos diferentes campos e de aprofundarmos as discussões, especialmente no âmbito da Psicologia, a respeito da intersetorialidade, da atenção em rede e interdisciplinar, e, principalmente, da saúde como produção contextual e multideterminada, sendo um dos pilares da dignidade e do respeito ao ser humano.

Entendemos que a experiência realizada, embora pontual, mostrou-se profícua e indica muitas possibilidades de desdobramentos, além de proporcionar à formação a possibilidade de contato com a diferença, com os limites e com os desafios de atuar em saúde na convergência das políticas públicas. Em última instância, aponta para uma formação que não é só da ordem técnica ou conceitual, mas que se abre para a sensibilidade, compromisso, articulação e invenção.


Palavras-chave


Saúde; Sala de Espera; Direitos Humanos.