Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Uma experiência em mim... ‘De Braços Abertos’ à ‘Redenção’: modelos em disputa
Patrícia Carvalho Silva

Última alteração: 2018-01-26

Resumo


Tal resumo, serve-me quase como um desembocar de parte do desejo de escrever o que foi a experiência vivida enquanto Coordenadora da Linha de Cuidado de Saúde Mental numa Organização Social do município de São Paulo, sendo que um dos territórios de gerenciamento de serviços de saúde mental eram localizados na região Central deste município do ano de 2016 a 2017. Tal vivência trouxe consigo uma imersão em dois momentos distintos no que diz respeito a política pública municipal sobre drogas, mais especificamente em dois Programas distintos “De Bracos Abertos” e “Redenção”.

Utilizarei para tanto de duas cenas:

Cena 1: a primeira vez que entro num Hotel alugado para a moradia de 100 beneficiários do Programa “DBA” e seus filhos, uma criança de aproximadamente 9 anos me diz: “tia, você veio para conhecer minha mansão?”

Cena 2: após uma grande ação policial em 21 de maio de 2017, um usuário machucado na rua, este com os pés atrofiados e que se locomovia com um skate é levado para o Pronto Socorro do território. Eu era a única profissional ali disponível para acompanhar a ambulância e indo junto com o mesmo, ele fala: “me tiraram meu único jeito de andar na cidade”.

Duas cenas! Dois modos de intervir! Duas concepções de sujeitos! Dois modos de se pensar a clínica! Elas colocam holofotes no fato de que políticas públicas se desenham frente a uma racionalidade, esta que vai se modificando na história. Foucault (2000) refere que saberes e técnicas clínicas, médicas e não médicas, psicológicas constituem um corpo de discursos, práticas profissionais, técnicas e sistemas de julgamento que traduzem um determinado ethos que tem um importante papel na produção e agenciamento da subjetividade no contemporâneo, com impacto nas práticas médicas, no cuidado e na gestão de saúde a elas relacionadas.

Neste sentido, estar na gestão e acompanhar os processos de cuidado se modificando de forma abrupta, tornou-se para mim uma experiência que refletiu e reflete a disputa histórica no campo do cuidado às pessoas usuárias de drogas, principalmente àquelas que estão em cenas de uso abertas e urbanas.

O município de São Paulo, é marcado pela história de aproximadamente 25 anos, nos quais algumas ruas do bairro da Luz foram sendo ocupadas por um grande número de pessoas em situação de rua e uso de crack. Apesar da grande vulnerabilidade ali presente, tal local ficou conhecido muito mais pelo uso de crack, e deste modo, desde os anos de 1990 várias iniciativas do poder público foram tentadas com objetivo de reformular as características da região, baseadas na revitalização do espaço urbano.

Entre estas, numa tentativa de intervenção, sob a gestão de Fernando Haddad (PT), iniciou-se a implementação do Programa “De Braços Abertos”, criada enquanto uma Política Intersetorial Municipal, apresentando-se com duplo objetivo: intervenção no espaço urbano entendido como degradado e violento e apoio para as pessoas com uso problemático de álcool e outras drogas.

Apoiava-se em conceitos norteadores numa lógica de redução de danos: primeira moradia, inspirado no conceito de ‘Housing First’; baixa exigência - não são definidos condições a priori que para inserção ao programa; garantia de direitos - partindo do reconhecimento da extrema desvantagem e vulnerabilidade destas pessoas e oferece um pacote de direitos: moradia, alimentação, trabalho e renda.

O projeto de cuidado dos beneficiários do programa, ofertava vagas em hotéis, três refeições diárias e renda frente a inserção em diferentes oficinas de trabalho e capacitação, constituindo-se a partir daí articulações de produção de cuidado que se fizessem necessárias para cada usuário, pautando-se no respeito a singularidade e principalmente, na pessoa como articuladora do seu próprio cuidado.

Na disputa eleitoral de 2016, que em contraponto a tal programa, a discussão sobre como acabar com a “cracolândia” retoma centralidade nos debates. De acordo com a oposição ao governo então vigente, o DBA reforçava o tráfico na região, haja visto o aumento de circulação de dinheiro pelo pagamento do trabalho realizado pelos beneficiários e não responsabilizava o usuário para o tratamento da dependência química.

A ideia de um território sem lei, habitado por pessoas sem crítica sobre sua condição estava a todo momento em pauta na discussão, deste modo, o debate foi se desenhando na perspectiva de que ações mais “firmes” precisavam ser realizadas e a resposta seria a intensificação de internações, inclusive compulsórias, e aumento de operações de combate ao tráfico.

O candidato João Dória (PSDB) ganhou a disputa eleitoral para Prefeito e assim lançou mão a partir de janeiro de 2017 d de um programa que foi sendo construído como promessa de acabar com aquela cena de uso e tráfico, intitulado como ‘Redenção’.

O delineamento do novo programa foi sendo apresentado de acordo com cada uma das intervenções, mas nenhuma novidade era notada. Como exemplos, diversas ações policiais de combate ao tráfico[1], abertura de 290 novos leitos em hospitais psiquiátricos[2] para desintoxicação de usuários de álcool e outras drogas e a mídia construindo uma narrativa ostensiva e pejorativa frente a situação de tráfico na cracolândia.

Em 21 de maio de 2017, uma megaoperação policial se deu nas ruas que ficavam o maior número de pessoas em situação de rua e foi a partir daí que ações no âmbito da Assistência Social e Saúde foram sendo efetivadas, firmando com intensidade e rapidez essa nova formulação de cuidado, o Programa Redenção. A construção de Centros de Acolhida Emergenciais, um contêiner intitulado como CAPSad 24h – apesar de não ter equipe e estrutura mínimas conforme Portaria nº 130/2012 – e solicitação da Prefeitura para autorização do Ministério Público para remoção compulsória de usuários para internação, esta então não autorizada após recurso.

O tratamento parte da premissa de desintoxicação e internação como estratégia para inserção nas demais ações, sendo que há um caminho a priori no qual o usuário terá que caminhar para ser inserido nas demais ofertas. Perspectiva esta conhecida como “treatment first”, no qual apenas após o usuário engajar num tratamento contra o abusivo de drogas ele estará “qualificado” para receber outras ofertas de cuidado.

Da perspectiva da ampliação de direitos: Cena 1 – a moradia, um lugar para chamar de seu, ambiente protegido, o sujeito é cidadão/tem direito; para a perspectiva de que há um mal A DROGA : Cena 2 –  a impossibilidade da circulação, uma cidade que não lhe quer, o sujeito é zumbi/criminoso/drogado.


[1] Haja visto o Dossie que o Coletivo “A Craco resiste” elaborou chamado Agressões e Violações na Cracolândia, in: http://www.ctviva.com.br/blog/wp-content/uploads/2017/05/Agress%C3%B5es-e-Viola%C3%A7%C3%B5es-na-Cracol%C3%A2ndia.pdf

[2] Diário Oficial São Paulo, 27 de maio de 2017.