Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Antropologia, dados ‘públicos’ e saúde mental indígena
Rui Harayama

Última alteração: 2018-01-26

Resumo


Apresentação: As discussões sobre o método etnográfico, na interface com burocracias e documentos digitais, associadas à utilização de técnicas de webativismo, hacking, extração e mineração de dados tem colocado questões éticas e epistemológicas sobre o processo de evidenciação e exposição de dados populacionais em múltiplas plataformas. Esse arranjo de tecnologias da informação também tem reanimado as discussões sobre propriedade e usos das mesmas sem o consentimento das populações. No caso dos povos indígenas, as 'tradicionais' relações com burocracias estatais (portarias, relatórios de identificação e delimitação territorial, registros de nascimento indígena, entre outros) começam a incluir novos elementos, como as tentativas de monitoramento dos indicadores de saúde e educação e a incorporação do léxico da gestão neoliberal. Desenvolvimento: O presente trabalho apresenta contrastes e arranjos de concepções de propriedade, direito e sigilo elencados nas relações entre populações indígenas, antropólogos e Estado Nacional a partir da Lei de Acesso à Informação (2012), o Sistema CEP-CONEP e as instâncias de participação política indígena, tal como a 1° Conferência Nacional de Política Indigenista (2015). Desde a publicação do relatório da CPI da FUNAI e INCRA, em maio de 2017, demonstra-se a lógica de revelação de dados e fatos como estratégia de produção de verdade. Afinal, a produção da verdade tem se baseado, no “ocidente”, no arranjo de dados materializáveis, sejam eles ‘empíricos’-observacionais ou jurídico-confessionais. É pensando na persistência desse modelo que gostaria de pensar a produção de formas ativas de dados e informações, sobretudo quando ela tangencia um padrão de ativismo da informação, que está em voga nos dias de hoje.Afinal, a demanda por dados e o seu controle, seja para fins científicos ou políticos, pautam diversas arenas do contexto sociopolítico brasileiro. Como exemplo, podemos observar a demanda por dados durante da CPI da FUNAI-INCRA e até mesmo nas deliberações da I Conferência Nacional de Política Indigenista que teve como uma das propostas urgentes no Eixo 6 - Direito à Memória e à Verdade que exigiam a consulta prévia às populações indígenas.Essa composição de demandas, da produção de dados para desvelar a verdade não evidenciada, via audiências em uma CPI, ou na produção compartilhada de conhecimento entre indígenas e pesquisadores para garantir a eticidade na construção de dados, tem um novo ator no cenário brasileiro, o uso, de forma ativa, de dados considerados ‘públicos’.Com ‘forma ativa de uso de dados’, refiro-me à prática de extração de dados e mineração de dados, prática que se torna comum e pode ser resumido, para leigos, como o procedimento de coletar, correlacionar dados e procurar padrões a partir da dinâmica interna dos banco de dados. Os dados epidemiológicos dentro do SUS são sistematizados no SIASUS - Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS, que se tornou abrangente a partir de 1996. Neles, dados ambulatoriais, de procedimentos e de serviços especializados ficam armazenados dentro do DATASUS. Dois marcos são importantes para discorrermos sobre esse processo em tela, a partir de 2013, os dados sobre atenção Psicossocial foram incluídos, e com isso, dados sobre o atendimento à saúde mental foram sendo associadas à Portaria 508 de 2010 que insere o termo etnia a partir de uma lista de 264 etnias indígenas. A confluência dessas duas informações, quando cruzadas, resultou no seguinte quadro para o período de 2014 a 2016, de 643324 atendimentos relacionados à atenção psicossocial. Ao analisar os dados, fica evidente a desproporcionalidade dos dados, na qual mais da metade dos casos foram registrados na etnia Arikose, que não está listada em banco de dados como o do ISA e nem mesmo no da própria SESAI. Assim como a ocorrência do F19.2 e F10.2, dependência ao álcool e outras drogas, recorrente na discussão sobre saúde indígena, e os dados de esquizofrenia paranoide e da esquizofrenia que saltam aos olhos. Sobretudo se balizada às discussões sobre a vulgarização dos transtornos psiquiátricos e os processos de medicalização da saúde mental. Resultados: A partir desses dados, foram solicitadas informações via Lei de acesso à Informação, no qual foram solicitados dados sobre saúde mental indígena inseridos no SIASI. Observa-se que na tabulação e sistematização dos dados, as opções entre discriminar tipo de ação, grupo e público etário variam. Para além da discussão ético-teórica da intervenção psicossocial em crianças de 0-4 anos, os dados obtidos revelam diferentes formas de compreender a forma de distribuição e categorização das informações. No SIA-SUS, a evidência da etnia como indicador importante, junto à categoria raça/cor, para evidenciar a inequidade dos serviços de saúde demonstra como os dados epidemiológicos passam a ser frágeis quando comparados em suas diferentes formas oficiais. As ocorrências registradas no SIA-SUS via DataSus, as que foram obtidas para os anos de 2014-2015, e as do ano 2016, pela SIASI-SESAI via Lei de Acesso à Informação, mostram cenários de saúde mental completamente diferentes. É importante ressaltar que os registros possíveis no SIASI são de indígenas aldeados e atendidos em contexto de aldeamento. O que é importante ponderar com essa exposição de dados é a própria objetificação imediata que números e dados vem recebendo nos dias de hoje.No Brasil, desde a promulgação da Lei de Acesso à Informação, em 2011, que transforma o direito à informação em direito fundamental,  vários são os movimentos sociais e organizações não governamentais que fazem uso desse dispositivo para promover o controle social das ações do governo. O intuito dessas ações é trazer dados que mostrem a realidade das ações do governo em diversos campos. Entretanto, técnicas como essas, de publicização de dados, somadas às técnicas de extração e mineração de dados, não necessariamente trazem realidade para o debate, mas alguns elementos para a discussão pública do tema. Como aponta Gabriela Colleman, as técnicas utilizadas pelos hackers aproximam-se mais das armas geeks para a demonstração e evidenciação de estratégias de obtenção de dados e sua exposição e não necessariamente como forma de obtenção e revelação da verdade. Fica evidente como em diferentes esferas das políticas públicas da saúde indígena, o território, DSEI, e a etnia são utilizados como elementos em torno dos quais os dados são apresentados. Considerações finais: Faz-se necessário refletir sobre o modo como esses dados são produzidos e geridos para então utilizá-los como elementos de compreensão do cenário de políticas públicas indígenas, assim como colocar em constante problematização o papel dos dados de epidemiologia como elementos que circunscrevem e ajudam a promover a estigmatização de populações ao normatizar identidades e padrões de patologias. Por fim, é importante ressaltar que o papel do Estado como controlador dos dados de vida e morte, e com isso das ocorrências de saúde e doença, de populações indígenas ou não, é tão naturalizada que permanece, nos dias de hoje, a prerrogativa que dados públicos podem ser utilizados sem reflexões éticas maiores, vide a Resolução 510 do Sistema CEP CONEP, que determina que II – pesquisa que utilize informações de acesso público, nos termos da Lei no 12.527, de 18 de novembro de 2011; não precisam passar pela análise de comitês de ética em pesquisa do Sistema CEP-CONEP. Afinal, como lembra Carlo Caduff entre outros pesquisadores, a retórica da transparência e de governo de dados abertos traz consigo práticas de sigilo. É nessa ótica que se torna necessário repensar as formas de produção de conhecimento e seus desdobramentos dentro dessa economia de sigilo.

Palavras-chave


saúde mental; saúde indígena