Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Escrevivência de afeta-ação ao escutar ritmos de (re)existência: quem tem medo das (os) Kaingang?
Carine Capra-Ramos, Larissa Barbosa Almeida

Última alteração: 2018-01-26

Resumo


Apresentação

O presente trabalho trata-se de uma escrevivência, advinda da inserção de duas residentes multiprofissionais na Aldeia Kaingang Por Fi Ga, situada em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul (RS). Pontua-se que a escrevivência foi transpassada por afetos ambivalentes de enfrentamentos, medos, rupturas, (des)continuidades, reexistência, reinvenções e corpo-mente presentes no desafio de narrar-e-refletir sobre os itinerários, afetos e notas de desassossego produzidas nesta travessia, nas inconstantes águas da Saúde Mental Coletiva. A escrevivência objetiva, por meio da mediação de nossos  afetos, traduzir a experiência vivida em experiência representada, para que seja possível narrá-la, partilhá-la e promover furos na bolha da invisibilidade construída sobre bases sólidas, duras e frequentemente silenciadoras no que tange a escuta implicada ao bem viver dos povos indígenas que são diversos e singulares.

 

Desenvolvimento

Adentrando em território indígena, compreendendo que o território vivo contempla além da topografia e geografia do local, os contatos com este universo simbólico nos apresentam questionamentos e desafios que ultrapassam a responsabilidade social de promover o respeito e exercer o dever de preservação de uma cultura ancestral. Estamos construindo uma relação com um corpo que se nutre pela possibilidade de existir mesmo que imersas em uma cultura baseada na busca lucrativa por resultados dizimadores. Ao adentrarmos esse território vivo, percebemos que o que nos guia é a hipótese de que o direito à existência nos está sendo apresentado enquanto ponto central das relações a serem estabelecidas, em uma cultura que insiste em (r)existir em um espaço-tempo próprios.

Reconhecendo a diversidade como um valor e que há uma aparato discursivo que legitima o que é homogêneo no lugar de fala, almejamos compartilhar as sensações sentidas ao se afetar pela presença do outro, não falar por. Os nós que desejamos partilhar são testemunhos de fluxos de (des)afetos, os quais vivenciamos em uma tentativa de construir linhas de cuidado em saúde mental a uma comunidade indígena de etnia Kaingang na Região Sul do Brasil.

O percurso foi trilhado por mulheres, atuantes no campo da saúde mental coletiva, habitantes de corpos sensíveis à afetação no contato com o som dos tambores. Ciclos iniciam-se, encerram-se e reiniciam-se, compasso rítmico inerente ao movimento vital. Como carregar a possibilidade de co-criação de um ambiente facilitador e promotor do movimento do ciclo, que respeite o ritmo que está sendo tocado por nós, mas também conosco?

No Brasil, a agenda econômica encontra-se dissociada da agenda socioambiental. Em tempos de importantes litígios com grandes empreiteiras, mineradoras  e conflito por terras passíveis de exploração, nota-se que a mídia se faz presente majoritariamente enquanto reprodutora do discurso oficial, cujo viés é desenvolvimentista, coloniza-dor e excludente, (de)marcando os territórios existenciais dos povos originários, indígenas, kilombolas e riberinhos ora como “recursos” naturais passíveis de exploração e ora como espaços destituídos de subjetividade, de seres vivos, de vidas e de narrativas próprias. Ou seja, caminham lado a lado a postura oficial etnocida e ecocida. Como atravessar a bolha colonizadora que bloqueia o som dos tambores e tampona a possibilidade de exercício de escuta e promoção de ações de cuidado? Desejamos por meio dessa escrevivência, compartilhar algumas perguntas co-construídas artesanalmente a partir dos afetos, na/pela disponibilidade para o encontro.

Que valores envolvem e implicam os cor-ações de quem se aquece ao indignar-se com a parcialidade produzida pela bolha? O medo seria a emoção que atravessa a bolha ou se acopla na superfície desta? Qual barulho silencia-a-dor? Que afetos o silêncio, enquanto velocidade da escuta, colore a pintura dos encontros transformadores de som silenciados para o som do silêncio que se transforma em dito audível possível de escuta? Qual caminho se pretende trilhar, após cinco séculos em que se construiu um modelo, cujo itinerário tem sido silenciando? Nem todo mundo ouve, lê, toca e vê o som da mesma maneira, o que possibilita uma polifonia de subjetividades, em contraposição a uma mono(tono)fonia estagnante.

Disponíveis ao contato e fazendo uso dos afetos, percebemos os aromas que guiam o/ao encontro em/do território indígena. O território e o corpo e os corpos enquanto territórios. O direito e a vida, há 517 anos lutando pelo direito de existir. Como permitir-se guiar pelas percepções? Que lugar ocupa o encontro de vozes decoloniais aberto às diferenças?

Escolhemos ser buscadoras de sentido nas brechas das ações públicas de saúde, reconhecendo a imersão em um sistema estatal coloniza-dor e racista. É possível que o mesmo agente violador de direitos fundamentais também promova cuidado? A contradição do movimento repara-dor de um etnocídio histórico pelo mesmo Estado viola-dor nos convida a uma constante análise de implica-ações. Precisamos co-criar um novo jeito de se relacionar com quem nos compartilha que a vida pode ser percebida por um outro espaço-tempo. Afetando-se pelo contato com outro, quem torna-se outro? Ao escutar dos tambores, nos tornamos outro? Que(m) é outro?

O debate sobre as linhas de cuidado e desenhos tecnoassistenciais alcançam outro marcado por um universo simbólico singular? Nos interessa dialogar sobre as diretrizes indigenistas na sua forma de afeto, quais são os espaços de visibilizar outros dizimados pela matriz colonizadora? No nosso contato com a alteridade, estamos (re)produzindo relações de poder que subalterniza ou possibilita o protagonismo de formas de existência?

Descolonializando a escuta andaremos por outros ritmos, disponíveis no momento em que fluímos em uma velocidade diferente. Nossa relação (cosmovisão, economia, política) foi construída baseada em outro tempo, muito rápido nos desencontramos e não sintonizamos. Então, pausamos.

Por um corpo vibrátil que se afete na presença do/com outro. O caminhar junto tenciona os passos a se movimentarem em outra velocidade. Que sentidos o tempo em que se vai junto carrega? De mãos dadas é possível produzir batuques polifônicos ao orquestrar a vida. Percebemos esse trabalho como um dispositivo que possibilita o escutar de sons que vibram na velocidade do encontro dotado de historicidade, mas que se dá sempre no presente. Por uma (r)existência de um sistema/fluxo encontros centrado!

 

Considerações finais

Por compreendermos que nossa éthica e prática profissional estão diretamente ligadas às necessidades e demandas da época em que vivemos, escrevivernciar é importante ferramenta que possibilita problematizar as matrizes geradoras de conhecimento hegemônicas e produtoras de saber e pensar como co-construir caminhos exitosos de mudanças. Ademais, documentar, possibilitar a escuta, a visibilidade e a problematização da relação dialética entre as narrativas autobiográficas e as condições sociohistóricas é romper com a compactuação de ações etnocidas e ecocidas de silenciamento.

Por fim, é preciso ampliar a discussão sobre a importância do lugar geográfico enquanto um lugar político de existência, pois em uma sociedade marcada pela exclusão do dito diferente, o fazer saúde precisa estar conectado intersetorialmente e trabalhar em rede, se dialogar com os determinantes sociais de saúde e garantir que as políticas públicas cheguem aos que se encontram excluídos e destituídos de direito a existência, em decorrência de Políticas que demarcaram exatamente esse não-lugar. Ademais, o direito a existir tal como se é deve ser garantido e promotor de acesso a espaços coletivos, de representatividade, e de direito à afetividade, Kaingangs não são apenas um nome ou estatísticas. Posto isso, nós, a sociedade dita civil, iremos refletir sobre nossa co-responsabilidade e consentimento às violações diárias que acontecem em prol do desenvolvimento econômico, com financiamento do BNDS e dinheiro público?

 


Palavras-chave


Reexistência; Afeta-ação; Bem Viver Indígena