Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Redução de Danos uma prática ético-política nas vivências com a População em Situação de Rua
Elissandra Siqueira da Silva

Última alteração: 2018-01-26

Resumo


Neste trabalho pretende-se relatar vivências que forjaram possibilidades de agir no território de experiências, buscando assim  resgatar de alguma forma a contribuição da Redução de Danos (RD) para que chegássemos aos territórios das pessoas em situação de rua (PSR) e ali pudéssemos permanecer.

Entendendo que alguns conceitos colam no corpo de tal forma que transcendem o seu uso como ferramenta e incorporam-se à vida em todas as suas dimensões. Desenham a ética de vida que desejamos, buscamos e constituímos no dia a dia. Podemos dizer que a Redução de Danos é um modo de ver e viver o mundo, mais do que um conceito ou técnica, estratégia ou diretriz. Nela, o que nos interessa são as relações que as pessoas estabelecem, na singularidade de cada uma e em suas possibilidades de potência de vida ou morte.

A experiência com a Redução de Danos permite entender de uma forma ainda mais ampla e próxima a complexidade e diversidade da vida, principalmente, nas situações de marginalidade, discriminação e preconceito vividas por pessoas entendidas como “minorias”, mas também, por outro lado, toda a potência, solidariedade e criatividade que há nelas.

Quando falamos das pessoas em situação de rua algo se coloca como necessidade: a defesa da vida contra a produção de morte, formatada nas prescrições morais que almejam retirar as pessoas da rua, adequá-las aos padrões de morar da maior parte da população, ficar abstinente do uso de drogas, voltar para família, conseguir emprego fixo, entre outras. Não que estas questões não possam ser desejáveis pelas pessoas que vivem na rua, porém a questão é o modo como são ofertadas, por vezes de forma violenta e descontextualizadas das necessidades das PSR.

Desde o seu início, mesmo com um caráter inicialmente mais preventivista, a RD se mostrou uma prática mais humanizada, com referência nos Direitos Humanos. Preocupada em orientar e prevenir sobre os possíveis danos causados pelo uso de drogas, o foco da RD é o sujeito e não a sua “prática ilegal ou pecaminosa”, o que possibilitava e gerava mudanças na relação de uso desses sujeitos.

Este modo de operar da RD já possibilitava a abordagem às PSR naquela época, pois ao trabalhar em campo, encontrava nas cenas de uso, pessoas em situação de rua independentemente de estarem em uso de drogas ou não. Talvez possamos dizer que seja um dos primeiros “serviços” que acessam a PSR no Brasil. Referindo-se à atenção a PSR que usam drogas, Marcelo Mayora (2016) afirma que a primeira tarefa que se coloca para quem deseja compreender a utilização de crack e/ou outras drogas por pessoas em situação de rua é relativizar a importância da substância. Encontramos fundamento para esta afirmação na Redução de Danos, onde, dentre outros aspectos, alerta-se para necessidade de se questionar a centralidade da substância e a noção de “dependência química” – que remete a uma dependência provocada apenas pela substância.

As experiências de Redução de Danos contribuíram para revigorar as práticas de atenção em saúde. Podemos destacar: o reconhecimento e valorização da singularidade de todos os sujeitos como ponto de partida para o encontro que acontece no território e realização da escuta e estabelecimento de vínculo como aprendizagens importantes dos itinerários da RD. Uma das questões destacadas pela Redução de Danos é a dimensão ética das práticas de cuidado, que está presente no encontro entre trabalhador (ou outro) e usuário e que diz respeito às formas como se dará este cuidado.

Podemos dizer que o cuidado se dá no encontro, muitas vezes em plena cena de uso, podendo ser durante ou logo após, com o sujeito ainda sob seu efeito. O uso não é impeditivo para a aproximação: como em qualquer outra situação, há uma forma de chegar. Por isso, temos o campo, como território existencial do sujeito, lugar de olhar,

escutar e sentir, captar os sinais nessa relação substância-sujeito-contexto. “Entrar em um território existencial já é modificá-lo fazendo parte dele, pois ele é esta expressividade sempre provisória que a tudo capta, sensível e determinante na constituição de seus personagens” (MACERATA, SOARES & RAMOS, 2014, p. 923).

Importante destacar que, quando o encontro entre trabalhador e usuário se dá no território de vida do sujeito, em terreno desconhecido para o trabalhador, é este que está vulnerável no momento. Já no ambiente institucional, o vulnerável é o usuário. Na rua, se inverte a balança de poder que, habitualmente, pesa para o lado do trabalhador, pois o serviço é sempre o local seguro, conhecido e com as regras cotidianas do trabalho e as normativas da gestão. A abertura ao desconhecido e à vulnerabilidade não é uma

constante nos serviços e equipes de saúde.

A RD é um processo educativo permanente, em constante movimento. Talvez possamos dizer que a RD busca desconstruir a cultura instituída, por partir da ideia de mover o pensamento, aprender com o desejo e ter práticas libertadoras. Há uma frase muito usada entre os redutores e redutoras de danos, digamos que seja uma máxima da RD, que resume o caminho trilhado de seu fazer: “entre o ideal e o real existe o possível”.

Nas idas para a Praça Garibaldi, nos encontros que foram constituindo o grupo Me Apoia Aí um pensamento acompanhava permanentemente uma parte dos trabalhadores. A ideia de que cada encontro poderia ser totalmente diferente do que se planejava e de que seria importante acolher essa diferença, esse possível.

Em torno deste impasse que se apresentava nas diferentes formas de lidar com a diferença nas idas à Praça Garibaldi surgia um importante marcador metodológico e ético do trabalho que acontecia. Como lidar com a questão do uso de drogas, uma vez que as intensidades dos usos dos participantes atravessavam a experiência das rodas de conversa e o trabalho do grupo? As repetidas experiências institucionais dos trabalhadores das políticas públicas engessam os modos de se relacionar com essas intensidades e coíbem a produção do novo nesses encontros nas cenas de uso.

A trajetória com a redução de danos, por outro lado, parece ser um ponto facilitador para suportar essa intensidade dos usos e dar espaço a ela. Não por acaso a redução de danos é diretriz do cuidado das equipes que trabalham com as PSR. Destacamos aqui a elaboração da Equipe Pop Rua do RJ, que nos atenta para a importância de se saber, entender e trabalhar com os conceitos de saúde construídos pelas próprias pessoas em situação de rua: A redução de danos (RD) é não só um dispositivo, mas, sobretudo, um paradigma do cuidado. A RD foca o sujeito e seus processos de vida e não a substância psicoativa de que se faz uso ou abuso. O uso de drogas pode ser ou não um problema de saúde (EQUIPE POP RUA, 2002, p. 15).

Assim a RD é situada como um paradigma do cuidado, numa perspectiva ético-política. Entendemos a redução de danos como um instrumental teórico e prático fundamental para o trabalho com as pessoas em situação de rua, que se deseja feito de relações horizontalizadas, composto por diferentes saberes e, acima de tudo, com respeito e afirmação das diferentes formas de viver, buscando potência de vida em todos os encontros com a rua e as pessoas que nela vivem.



Palavras-chave


Redução de Danos; pessoas em situação de rua