Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Sobre a rua
Harete Vianna Moreno, André Rodrigues, André Rodrigues, Heloísa Elaine dos Santos, Heloísa Elaine dos Santos, Lumena de Almeida Furtado, Lumena de Almeida Furtado, Mariana Leite Hernandez, Mariana Leite Hernandez, Naymara Damasceno, Naymara Damasceno, Paula Etlinger, Paula Etlinger, Paula Monteiro de Siqueira, Paula Monteiro de Siqueira

Última alteração: 2018-01-26

Resumo


O presente trabalho tem como proposta pensar a rua em sua dimensão ética e política, um “desespaço” – a rua em pedaços, rua em metamorfoses. Partindo de questionamentos feitos por atores pesquisadores e trabalhadores, buscaremos produzir outras visibilidades acerca da rua e de quem produz existência nela. Não se trata de encontrar uma lógica identitária e definitiva do que é a rua, nem tampouco colarmos nas suas visibilidades hegemônicas alimentadas pela mídia, mas de acompanhar as existências que se produzem na rua, seus processos, trânsitos, velocidades e também as relações de dominação e de violências que a atravessam..

A grande mídia que difunde modos de ver o mundo e dirige um pensamento coletivo a respeito daquilo que são (podem ser) essas existências, a figura da pessoa em situação de rua, com um mito de periculosidade, que produz nos outros, corpos amedrontados e assujeitados. A população, corpo que clama por espaços “seguros”, reconhece tal grupo como um perigo para a sobrevivência na cidade. Dessa forma, alimentada por apelos midiáticos, muitos defendem a retirada das pessoas em situação de rua, desmanchando uma possibilidade de existência.

Tal situação é ratificada quando o projeto da Prefeitura de São Paulo, chamado “Cidade Linda”, traz a ocupação do espaço público pelas pessoas em situação de rua como um problema. A vigilância sanitária, por exemplo, responsável por prevenir, minimizar ou eliminar os riscos à saúde por questões decorrentes do meio ambiente, tende a inviabilizar a existência na rua, pelos riscos que a multiplicação de doenças e pragas, acúmulo de comida ou outros objetos podem representar - talvez, mais para a população em geral, do que para as próprias pessoas em situação de rua. A disputa entre/nas políticas públicas de saúde, habitação, assistência social etc, atravessa as possibilidades do existir sem muros.

Num outro polo, mas ainda no âmbito da saúde, o Consultório na Rua, estratégia instituída pela Atenção Básica em 2011 e que tem como objetivo ampliar o acesso da população de rua aos serviços de saúde, de forma itinerante e em parceria com as UBS, permitiu alguma proximidade entre quem vive na rua e um modo de produzir saúde que apostasse nas relações (horizontalizadas).

No entanto, o desmonte do SUS e as ações higienistas realizadas pelo governo municipal de São Paulo enfraquecem esse movimento, autorizando em última instância, o seu desaparecimento, seja pela morte em decorrência de hipotermia ou quaisquer outras doenças, seja pela sua retirada do município sem um mínimo de vinculação aos familiares da cidade de origem, apenas assegurando, literalmente, sua passagem de ida. Se antes parecia haver uma certa dificuldade para a saúde pensar a (existência na) rua porque a (existência na) rua não estava na pauta enquanto possível, mas como algo a ser modificado profundamente, agora, com o projeto Cidade Linda, tenta-se impor uma certeza avassaladora: a rua não é pública, ir e vir é direito de poucos e viver na rua é proibido.

Há uma heterogeneidade de seres, em ser, na rua, que interessa a uma lógica capitalística proibir de transitar e (des)caracterizá-lo em “mendigo”: a perda da condição financeira - para o que a gentrificação é uma contribuição inegável -, questões de gênero e sexualidade, uso de substâncias psicoativas (também e não apenas), migrações para um estado cuja promessa da vida melhor esconde violências e precarizações, um rompimento com determinado modus operandi. Não há garantias de que se vai para rua por única e exclusivamente falta de opção. Afirmar essa diferença, pode ser mais que um cuidado em saúde; uma ética. Uma política como dispositivo que anula essa diferença, uma aniquilação.

A rua é lugar de todos e de ninguém, mas nunca de quem (sobre)vive nela. Das ações higienistas de fogos, bombas e jatos d’água, ao assistencialismo individual ou de pequenos grupos, as iniciativas acabam na mesma intenção: retirar da rua. Instala-se então, um problema: a rua enquanto impossibilidade de existência. Quais seriam alguns atravessamentos e tensões que atuam nesse cenário?

Relações de dominação, autoridade e poder se dão em ato na rua, o que acaba por definir quem são os marginalizados. A partir desta expressão que evidencia a desigualdade social, a rua também se mostra em suas contradições e zonas de conflito. Ao mesmo tempo, a rua não pode ser definida somente como zona de dominação, porque ela também é, em si, espaço cotidiano de novas formas de ocupar e construir a cidade.

É no chão da rua que o corpo anda, cai, dança, dorme, se aquieta, enche de solidão e se aproxima das pombas. Deste corpo que não se sabe o nome ou cujo nome nos é inaudível, o transitório é o que insiste: fazer do viaduto lar, ocupar um espaço exíguo sob um toldo para tentar se proteger da chuva, colocar a gigante carroça abarrotada de pertences, sons do rádio e pregações na porta do prédio, tem a duração do que é possível. O segurança o manda embora, a polícia o manda embora, o cidadão o manda embora, ele mesmo vai embora.

A rua é a cidade, composta pelas relações entre os indivíduos que a habitam. Sua conexão com os demais espaços e lugares configura-se em uma rede que permite a construção de contatos e rupturas, tendo, portanto, uma dimensão política.

Diante do que são a rua e a cidade, um desafio se revela. Como permitir que a tensão entre centralidade e mobilidade seja condutora de novos sentidos e significados, construindo zonas de resistência e de pertencimento? Como as pessoas em situação de rua constroem novas maneiras de afetar e serem afetadas que contribuem para a construção de redes culturais, sociais e políticas, pautadas no afeto e na produção de zonas de acolhimento e ruptura com o status quo?

A partir desta indagação, um primeiro componente fica evidente. Não é possível falar dos que vivem na rua sem olhar para suas casas e metamorfoses. De onde vem aquele que decide que a rua é seu espaço de morada? É possível definir isso? Não se consegue falar do espaço desvinculado daqueles que o ocupam. A rua ganha sentido a partir do olhar de quem a experiencia. E são múltiplas experiências. Uma infinidade de dor, alegria, morte e resistência: sobrevivência e vida.

Corpo e rua são em si a construção de entres que, mesmo no momento da desconexão, desfazem e refazem o que o corpo não suporta e ao mesmo tempo tem como potência. A espacialidade rua, entendida como símbolo/signo, traz consigo a concretude da morte e da potência do sujeito.

Na rua o corpo ganha os escudos dos cheiros de lixo e a liquidez do que se esvai e transmuta em um suportar de dor e resistência. Qualquer olhar para a rua, sem a possibilidade de pensarmos sua condição de “desespaço” tende a retirar da mesma o que faz dela o reconhecimento de que em cada pedaço de vida existem capturas e linhas de fuga - visíveis e invisíveis. Um olhar asséptico, observável quando as medidas adotadas pelo governo municipal de São Paulo são de repressão policial, ruptura das estratégias de cuidado e assistência e a tentativa contínua de retirar da rua sua condição primeira: ser pública, indica uma terrível política como dispositivo de extermínio.



Palavras-chave


rua; corpo; política