Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A Rede Parteiras engravida a Rede Cegonha e pede passagem às PICS
José Guilherme Wady Santos, Suelen Trindade Corrêa, Ricardo Luiz Narciso Moebus

Última alteração: 2017-12-19

Resumo


Temos como ponto de partida uma pesquisa nacional (Rede de Avaliação compartilhada: Avalia quem pede, quem faz e quem usa - RAC – 2013/2016) que avaliou os processos de produção do cuidado nas “Redes Temáticas do SUS”. Na cidade de Bujarú (PA) – um dos campos na Região Norte -, nos voltamos para a “Rede Cegonha” (RC) e, mais precisamente, para o que chamamos de “Rede Parteiras” (RP). A RP é uma rede de cuidado tecida por parteiras tradicionais, protagonistas do agir cotidiano naquele campo, e que se incorporou ao processo avaliativo desenvolvido pela pesquisa e, conosco, produziu um mundo para além do instituído na RC. A despeito das “Redes Temáticas”, da RC e tantas outras estratégias governamentais implantadas até então, as parteiras tradicionais seguem realizando seu trabalho cuidadoso, cotidiano, solidário e incalculável. Não medem esforços na defesa da vida de qualquer um, com baixo ou nenhum reconhecimento oficial, governamental, quando não desqualificadas ou até perseguidas pelos discursos e práticas profissionais “oficiais”. A arte de partejar ainda é desconhecida e mal compreendida por gestores e profissionais de saúde, sendo, portanto, muitas vezes diminuída ou até ignorada. Elas, “mães de umbigo”, “pegadoras de menino”, não só produzem cuidado, mas ao fazerem carregam um conjunto de conhecimentos sobre a saúde da mulher e o corpo gravídico que passa pelo movimento político de reconhecimento e valoração do que é ser parteira tradicional e como isso vai se construindo e desconstruindo. São esses cuidados, que também incluem toda comunidade ao seu entorno, que envolvem uma série de práticas fundadas em um conhecimento adquirido por meio de gerações, experiências seculares e até milenares, que abarcam rezas e mezinhas, cantigas e rodas, cultivo de plantas e ervas medicinais extraídas da floresta, e que são manipuladas como em um laboratório farmacológico, servindo como insumos na preparação de diversas substâncias naturais, administradas para toda ordem de problemas de saúde. Desse modo, temos o objetivo de, a partir do que foi produzido na RAC e, agora, por meio do Observatório do parto criado a partir dessa experiência, pautar a arte de partejar como uma Prática Integrativa e Complementar no SUS (PICS). As parteiras tradicionais se colocam como “guias” a nos conduzir por sua “caixa-corpo”, produtora de sabedoria, muito mais do que uma caixa de ferramenta conceitual, pois são saberes insurgentes que vazam qualquer prescrição racional, regulamentada, padronizada e normatizada. São saberes, por assim dizer, desobedientes àqueles que pautam na ordem do dia o saber técnico científico como único saber válido e absoluto na produção do cuidado-vida. Durante nossa experiência, temos buscado formas que nos permitem olhar a arte de partejar pensando um método coerente com essa prática, construída na absoluta aceitação do outro como interlocutor válido e protagonista, no acolhimento, na relação de confiança mútua e na solidariedade. Assim, a produção se configura como uma aposta coerente e desafiadora, a partir do encontro como método e da perspectiva do pesquisador “in-mundo”. Em nossas andarilhagens e conversações, temos vivenciado as conexões com as redes vivas presentes nos territórios existenciais tecidos pela RP e feito o constante exercício de perceber os sinais que vêm desses territórios, os sinais das matas, dos ramais, dos quintais e dos igarapés. Considerando a arte de partejar e todo o conhecimento nela envolvido, bem como o seu intercruzamento com as políticas oficiais de saúde da mulher, produzida pela RP no território da pesquisa, ainda é notória a ausência de uma abordagem que desloque o olhar marcadamente biomedicalizante e tecnicista para uma produção do cuidado que se faça a partir de uma abordagem perspectivista (abole qualquer pretensão de verdade absoluta), antropofágica (cuidado que dedica, interessa e transmuta-se pela alteridade no outro) e simétrica (reconhecimento de todos os modos de produzir vida e saúde, com intercambialidade entre os que desse processo fazem parte). Os profissionais do campo da saúde, ao se envolverem com a RP, não têm considerado a possibilidade de vivenciarem uma produção de cuidado que coloque em jogo a etnomedicina e a biomedicina, um encontro no qual outros saberes e racionalidades, que não os científicos, operam com grande potência a produção de vida, com sentido, autonomia, saúde e cuidado. Como podemos pensar a partir da condução de um parto por uma das parteiras-guia de nosso campo que, desde o pré-natal, trabalho de parto e pós-parto, lança mão de uma série de saberes (manipulação de ervas, raízes, cantos e ritos) na produção do cuidado à mulher e ao bebê. Quando nos referirmos ao sistema, temos que a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC) produziu algumas invisibilidades, pois na discussão e institucionalização das práticas “complementares” em saúde, deixou de considerar a perspectiva da saúde simétrica, que tenciona, inclusive, a dicotomia “principal-complementar” presente em seu bojo. A partir disso, cabe-nos perguntar qual prática de saúde é complementar nesse caso? Qual é a principal? Nesse caso, a biomedicina não estaria como uma prática complementar e a medicina tradicional como prática principal? Trata-se de uma “intermedialidade”, a exemplo da zona de contato criada por povos indígenas e profissionais de saúde, em seus encontros relacionados à saúde, doença e morte. A arte de partejar e todos os conhecimentos envolvidos na prática desenvolvida por parteiras tradicionais seguem produzindo o cuidado em uma dimensão horizontalizada e transversal, contaminando os saberes assépticos e desafiando qualquer tipo de verdade que se pretenda absoluta. Constroem sua autonomia e afirmam seu protagonismo de diversas formas, desde o cuidado “marginal” às mulheres, crianças e comunidade em geral, que vão cada vez mais se transfigurando e se incorporando em seus modos de existência, muito embora ainda careçam de reconhecimento da validade e eficiência de seus saberes. A PNPIC precisa rediscutir o que considera saberes válidos e trazer à luz uma série de saberes como o das parteiras tradicionais, que têm sido vistos a partir de uma perspectiva assimétrica. Defendemos, portanto, a perspectiva do cuidado simétrico, como o reconhecimento de todos como produtores de cuidado, que também têm suas próprias formulações de modos de vida e saúde. A RP traz um campo de intervenção dispersa e simétrica que tangencia a RC e, por conseguinte pede passagem para às PICS.

Palavras-chave


Rede Cegonha; PICS; Parteiras Tradicionais; Rede Parteiras