Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Ocupação Flores do Campo em Londrina (PR); cartografando uma experienciação
Stela Mari dos Santos, Gabriel Pansardi Ruiz, Gabriel Pinheiro Elias, Maira Sayuri Sakay Bortoletto

Última alteração: 2018-01-25

Resumo


Apresentação

A ausência de políticas públicas de habitação somada a ações voltadas para lógica do capital de uso do direito à moradia como mercadoria, tem como consequência as ocupações urbanas que, muitas vezes, erguem-se em terrenos sem infraestrutura básica e que se caracterizam como uma estratégia de luta por direitos. Embora o direito de moradia seja uma garantia da Constituição Brasileira, o déficit habitacional no Brasil mostra que 22 milhões de pessoas não têm casa, ou seja, 10% da população do país. Em Londrina, o bairro Jardim Flores do Campo está ocupado há um ano, por cerca de 600 famílias que resistem apesar da ameaça de reintegração de posse e do terror gerado pela ação da polícia no bairro. Buscamos compartilhar o caminho cartográfico de um coletivo que experienciou essa ocupação num momento de resistência pelo direito de ocupar.


Desenvolvimento

O caminho metodológico armado nessa vivência tenta experienciar uma proposta cartográfica. Cartografia segundo o referencial teórico que busca romper com a suposta neutralidade científica, convocando os pesquisadores a se permitirem mergulhar no mundo pesquisado, vivenciando as intensidades e afecções que o encontro com o outro produz. Nesse caminhar nos convoca a priorizar movimentos e processos, traçar linhas, dar vazão às intensidades. Reafirmando que a cartografia nos ajuda no processo de investigação pra buscar viver e acompanhar linhas, intensidades que se atualizam nos espaços vividos, sendo possível assim vivenciar linhas de fuga, marcar pontos de ruptura, produção de mapas em campos de forças: neste caso, o campo de forças de luta pelo direito à moradia. A entrada no campo se deu na perspectiva da implicação. Implicação do vivente que vai sendo afetado pelas intensidades presentes na vida e, ao mesmo tempo, afetando e produzindo intensidades, seguindo ritmos, acompanhando processos, sem se submeter ao domínio, mas num movimento também de produção, numa composição e decomposição de ritmos, linhas e velocidades. A experienciação foi agenciada pela entrada de membros do Observatório Microvetorial de Politicas Públicas em Saúde e Educação em Saúde da Universidade Estadual de Londrina (UEL) na ocupação urbana na região norte de Londrina (Flores do Campo). A imagem dada pelos veículos da mídia tradicional é de um espaço de criminalidade e violência e, conjuntamente a essa imagem, existe um movimento de desqualificação dos ocupantes, assim como sua responsabilização pelo cessar de verbas nas políticas de habitação para o município. No entanto, mudando a vista do ponto vemos os moradores da Ocupação Flores do Campo fazendo essa propriedade retomar a função social destes imóveis – cuja obra paralisara há dois anos – tanto pela manutenção e melhorias nas casas, no bairro, como pelas conquistas (trouxeram linha de ônibus, arrumaram as vias por onde passam carros, coleta de lixo, creche, horta comunitária, realizaram cursinho popular, oficinas variadas). Os moradores construíram e constroem novos significados produzindo vida, através de atividades coletivas e alcançando melhorias do espaço. Fomos sendo reconhecidos pelos ocupantes ao estarmos juntos com eles em encontros com os líderes da ocupação no qual nos foi apresentado um pedido específico de estarmos apoiando de alguma forma em algum movimento que pudesse dar uma imagem diferente à ocupação do Flores do Campo daquela dada pela grande mídia. Construímos um espaço de oficinas com os moradores e a partir daí todas as intensidades do processo cartográfico se deram.


Resultados e Impactos:

Cartografia Dançante

Estar no Flores se deu num ritmo totalmente não experenciado anteriormente mas que lembrava a dança do maracatu que hora intensificava seu ritmo e hora desintensificava, e quando isso acontecia junto vinha um pedido de continuar. E nesse ritmo fui me reconstruindo com os moradores e me misturando. Já não havia a pauta deles ou pedido deles mas sim a luta por um mundo que valhasse pena ser vivido por todos nós e nesse ritmo fomos compondo um novo coletivo.

Cartografia do viajante

Jardim Ocupação Flores do Campo: longe, quente – uma viagem – pensei, no sentido geográfico mesmo: o milharal e logo a estrada de terra – como em minha infância, com a diferença da terra vermelhíssima e a ausência das tortuosas árvores do cerrado de minha Minas Gerais. Eu nunca conhecera na prática uma ocupação, a não ser pela mídia e por discursos revoltados ante a ocupantes. Estou longe de ter esse pesadelo, o pesadelo da criminalização, da pressão por parte do Estado, da Londrina e dos Londrinenses “legítimos” – mas agora eu sei que ele existe, sei do esforço perverso de mantê-lo abafado. Conheci pessoas, pessoas fantásticas, cada qual singular, de risos, sorrisos e eu sei que, enquanto vou dormir pensando em mais um dia rumo ao sonho, eles dormem no pesadelo da incerteza. A partir daí percebi que ir ao Flores está longe de ser uma viagem no sentido geográfico da palavra – meu corpo sabia, não conscientemente, mas sabia que seria uma viagem pelo meu cerrado, agora um pouco mais vermelho.

Cartografia de marcas

O processo de acompanhar e estar junto à uma ocupação urbana como o Flores acaba trazendo muitas sensações. Durante toda essa trajetória junto com os moradores vivenciamos afetos quase que indescritíveis, construímos relações intensas forjadas na resistência e na produção de vida. Perceber seres humanos fazendo de seus corpos e de sua existência máquinas de guerra para resistir ao peso esmagador do capital inquieta, angustia nos faz repensar sobre o mundo em que vivemos. Afinal, morar não é um direito? Pra quem? Nessa realidade não, morar não é um direito, morar não é simples, morar é lutar, é propor um nova forma de ocupar espaços, é ressignificar políticas, relações e coletivos, e é passar por tudo isso, é disponibilizar o corpo e a pele para marcas profundas, intensas que vão sangrar muito e por muito tempo. Mas, principalmente, morar nesta realidade é estimular o processo de ocupação, de ressignificação de espaços, de contrariar a lógica capitalística e construir uma nova lógica social e coletiva.


Considerações Finais

Experienciar uma ocupação urbana que produzia e produz vida na luta a todo momento é de uma intensidade sem palavras. Cada encontro com os moradores representava uma mistura, seja como na dança, na viagem ou na guerra fomos nos borrando com eles e os momentos de retorno a outra realidade que não fosse o de luta com eles foi e se mantém sofrido.Sofrido no sentido de precisar ser resignificado pois já não somos os mesmos.


Palavras-chave


Cartografia; Política Pública; Experienciação