Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Helô – mais que um CID, uma lição de vida
Naila Feichas

Última alteração: 2018-01-25

Resumo


Relato de vivência da médica da equipe de saúde da família, sobre acompanhamento de pessoas em sofrimento mental. Discutiremos princípios do SUS e da Medicina de Família e Comunidade: cuidado longitudinal, vínculo, medicina centrada na pessoa, competência cultural ou antropologia da saúde, reconstruindo através da narrativa da médica, sua história com Helô.

Conheci Helô há 07 anos quando sua Agente de Saúde entrou no consultório apreensiva pois a comunitária estava agitada e queria consulta. Helô me explicou que fazia acompanhamento no Hospital Psiquiátrico mas, como ele estava sendo fechado, não sabia onde conseguir suas receitas de medicação controlada. Estava em uso de Fluoxetina, Levopromazina, Risperidona e Carbonato de Lítio. O pai lembra que sempre foi uma criança difícil para dormir e que a doença começou aos 15 anos de idade, vindo a piorar após o parto do segundo dos seus 3 filhos.

Eu já acompanhava seu pai, Sr.Riba e ele me contou que tinha uma sobrinha parecida com Helô. O próprio Sr.Riba costumava ter umas “viagens sem sair da cadeira, doutora” como ele me contava – alucinações? Mas nunca passou disso e ele gostava, eram agradáveis e eu brincava dizendo que ele viajava sem precisar pagar passagens; Sr.Riba acha graça dessa nossa conversa até hoje.

Helô aprendeu a fazer bonecas de pano no hospital psiquiátrico e vive disso. Ao nos conhecermos e me pedir as receitas disse “sou F20”! Tentei saber mais sobre ela, o que sentia, porque tomava os remédios e porque tanto medo de ficar sem eles e ela só repetia “sou F20”.

Recebíamos residentes de psiquiatria na época e pedi permissão para Helô para fazermos uma consulta juntas com a residente; ela aceitou. Insistia bastante para que cada residente, foram ao menos 4 ao longo de um pouco mais de um ano, investigasse os sintomas de Helô e se interroga-se sobre seu diagnóstico até que uma residente iluminada e sensível, percebeu que Helô não era F20! Esta auto-denominação sempre me incomodou pois havia tanta vida em Helô e o CID 10 que ela se auto-intitulava, resquícios do hospital psiquiátrico, estava redondamente enganado! Helô tinha Doença Bipolar. Ela não era um CID, muito menos F20 (esquizofrenia)!

Fomos reconstruindo sua história: negava delírios e/ou alucinações; apresentava choro lábil, insônia, pressão de fala, irritabilidade e labilidade emocional com consciência preservada. Começamos a modificar sua medicação; hoje ela usa Carbonato de Lítio, Prometazina e Fluoxetina. Ela me contava que tinha que fazer tudo sentada pois não tinha energia pra nada! Com a mudança da medicação, me perguntou: “por que fizeram isso comigo? Me roubaram 15 anos de vida!” Hoje, está super-bem, tem ouvido música e dançado! Dorme bem, arruma a casa, começou a fazer dieta (perdeu 12Kq em um ano). ”Estou 100%!”

Sua fala sempre me toca profundamente! Ela agradece por ter sua vida de volta. Montou uma lojinha e vende as bonecas que faz. Enfrentou a morte de seu companheiro este ano. Fofão, como era conhecido, teve uma pancreatite, tinha obesidade mórbida. Helô mais uma vez me comoveu me consolando com a perda de Fofão e explicando que ele sofreu muito nos dias em que esteve internado e que precisou partir, antes dela.

As bonecas de Helo são como ela: lindas, cheias de vida e de alegria.


Palavras-chave


medicina de família e comunidade; sofrimento mental; residencia médica