Associação da Rede Unida, 13º Congresso Internacional Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
Tamanho da fonte: 
Estratégia Saúde da Família e Práticas populares de saúde – revisão da literatura
Naila Feichas

Última alteração: 2017-12-26

Resumo


Segundo Helman (2003), a antropologia médica, ramo da Antropologia Social e Cultural, “que aborda as maneiras que as pessoas, em diferentes culturas e grupos sociais, explicam as causas dos problemas de saúde”, e que irá determinar o tipo de tratamento e a quem recorrer. E destaca que as crenças e práticas de saúde/doença são o cerne da cultura pois é através desta “lente que se enxerga e interpreta o mundo” e que se organiza socialmente a assistência à saúde.

Na literatura, há poucos artigos sobre o assunto e falam mais sobre práticas complementares de saúde como a medicina chinesa ou a homeopatia. A busca com Descritores de Ciências da Saúde na base de dados Scielo, Banco de Dissertações e Teses e na Bireme foi feita em inglês, português e espanhol com os DeCs Saúde da Família and/or Cuidados em saúde and/or Terapias complementares and/or Práticas populares.

Dentre os trabalhos selecionados na busca está a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), publicada em 2006 e modificada em março de 2017, pelo Ministério da Saúde brasileiro incluindo novos procedimentos (portaria no.849/2017 de 28/03/17), ampliando de 5 para 19 terapias complementares. No entanto, a PNPIC não abre opções para as práticas tradicionais brasileiras como benzer/rezar, puxar nervo torcido ou costurar rasgadura, se aproximando um pouco apenas na questão da fitoterapia e a prática popular dos chás e a massoterapia.

A produção acadêmica também traz poucas relações entre as práticas tradicionais de cura e os sistemas de saúde. Schweickardt (2002), destaca que o contexto amazônico é diverso e rico em práticas de cura, especialmente das populações indígenas, mas também de outros grupos sociais ainda presentes no cotidiano da região. Temos uma medicina popular que precisamos conhecer melhor. No trabalho de Medeiros no povoado de Brejinho, o autor demonstra que nossas práticas populares de cura são manifestações culturais da colonização plural que tivemos.

Na formação acadêmica da medicina, as práticas populares não se configuram como saberes legítimos, detentores de uma outra racionalidade, que passa por uma cosmovisão e lógicas diferentes de organização do pensamento e da prática; agimos como donos da verdade, repassando nossos conceitos de tratamento e cura de forma impositiva para a comunidade. No livro O médico e a rezadeira de Antonio Lino, a fala do médico intercambista cubano sobre a rezadeira é emblemática da postura aberta ao diálogo: “ela orienta, comunica, ensina, procura os pacientes. A gente escuta, respeita esse jeito de trabalhar dela... eu vim para trabalhar em parceria com essa cultura... interagir”.

Cada sistema cultural, tem sua simbologia para explicar, definir e classificar saúde e doença. Para a biomedicina, não faz sentido o quebranto, simbólico para a cultura popular. O antropólogo e médico de família Francisco Arsego também destaca que são variadas as concepções sobre saúde e doença, a depender do contexto sócio-cultural de cada grupo da sociedade. A forma com que o indivíduo se percebe doente determinará quem será o “curador” que irá procurar bem como o tipo de tratamento que acredita ser o necessário.

Laplantine destaca que a antropologia médica irá buscar o porquê do adoecimento, o como ficou doente e o como vai se curar. Helman afirma que os médicos explicam aos pacientes o que aconteceu enquanto que os cuidadores populares (curandeiros) explicam o porquê. A biomedicina, ao longo de sua história, foi se distanciando do mágico para afirmar sua subjetividade, relegando o universo mágico ao saber popular e religioso. De um lado, a biomedicina seguindo a tradição nosológica da Grécia antiga, Índia e China com o orgânico, o racional, a doença (disease), os humores, calor ou frio, desequilíbrio dos elementos constitutivos da pessoa; de outro, as sociedades tradicionais como a amazônica que atribuem as doenças à feiticeiros ou espíritos, animais, divindades, predominando o simbólico, ritual, o saber comum, illness.

Schweickardt também percebe a presença da magia no cotidiano das pessoas que vivem nas cidades, notadamente, nos bairros periféricos de Manaus; alguns nem tão periféricos assim como o bairro Parque 10 de Novembro, onde está situada a Comunidade União, local onde desenvolveremos nossa pesquisa de campo. A medicina tende a compartimentalizar a pessoa em especialidades enquanto o ritual de cura popular reordena o “universo simbólico do doente”; a doença instaura o caos na vida da pessoa enquanto o ritual ressignifica-a tornando possível a cura.

Entre os idosos de Parintins, aqueles capazes de benzer/rezar ganham valorização social, sendo muito procurados. Os idosos vêm sua prática como um dom e sentem-se gratificados por poder ajudar, não querendo tirar proveitos materiais. A folclorista Elma Sant’Ana conta sobre a benzedeira D.Nair Leopoldina de Oliveira que se recusava a benzer pois quem sabia fazer era sua mãe mas, com a morte da mãe e a convicção dos moradores de Novo Hamburgo, RS de que ela tinha o dom, acabou tornando-se benzedeira: “sem que eu percebesse, as rezas começaram a fluir... percebi que para cada doença vinha uma reza diferente. Passei a atender 20 pessoas por dia... meu telefone toca dia e noite”. Outra benzedeira, D.Eva conta que não se pode cobrar por benzedura: “cobrar eu não cobro, porque Jesus nunca cobrou, e o dia em que eu morrer, vou me encontrar com ele...” Acesso facilitado, dedicação, acolhimento, amor transbordam na vida destas pessoas dedicadas a aliviar o sofrimento!

O trabalho de Gerhardt, na cidade de Paranaguá constatou que, a depender do tipo e gravidade da doença, a automedicação e o cuidado tradicional eram os primeiros a serem procurados: nas faixas de mais baixa renda, a procura por cuidados populares era maior; nos casos de doenças consideradas leves, também. Já nas doenças mais graves, em todos os extratos sociais, a procura era por serviços médicos. A autora destaca que a categorização das doenças em graves ou leves varia de acordo com a “vivência de episódios prévios, hábitos culturais, conhecimento incorporado por contato com profissionais de saúde, pelos meios de comunicação... intercambio de experiências com vizinhos e amigos”. E conclui que os itinerários terapêuticos são um processo apoiado em estratégias individuais, familiares e coletivas plurais, algumas podendo ser até mesmo contraditórias; e que a avaliação do estado de saúde e tipo de recurso terapêutico a ser mobilizado, começa em casa. Quando falamos em itinerário terapêutico estamos discutindo acesso econômico, geográfico e contexto cultural que envolve crenças e costumes.

Outro conceito que surge é sobre eficácia terapêutica que, na biomedicina significa tratamento sintomático da doença mas, para a medicina tradicional os rituais de cura assumem o papel de controle social, reforçam noções de mundo independente da cura. Buchillet descreve alguns rituais de cura entre os indígenas Desana do Alto Rio Negro no Amazonas que conhecem o poder das plantas mas as utilizam mais no campo do simbólico, como veículo da encantação, um suporte material para transferir ao doente a palavra (encantamento) terapêutico.

Trabalhando no universo da cura popular, estaremos sendo levados aos cuidadores pela comunidade atendida pela estratégia saúde da família; os comunitários nos indicarão quem são os cuidadores que procuram em seus itinerários terapêuticos.


Palavras-chave


cuidado popular em saúde; estratégia saúde da família; antropologia da saúde