Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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O uso da tutoria como ferramenta de sensibilização para a importância do cuidado em saúde das pessoas em situação de rua com transtornos mentais, na formação médica: um relato de experiência
Luiza Soares de Miranda Lino, Kathleen Tereza da Cruz

Última alteração: 2022-01-03

Resumo


A partir de uma percepção reducionista, o imaginário social enxerga a população em situação de rua como um grupo homogêneo, imerso na pobreza, o qual utiliza os espaços públicos para dormir, se alimentar, fazer necessidades fisiológicas e usar drogas. Por consequência, essas pessoas não são reconhecidas como dignas dos mesmos direitos, estando, portanto, mais suscetíveis a diferentes formas de violência, incluindo a institucional, visto que as instituições também são atravessadas pelas construções sociais.

Contudo, os viventes de rua constituem um coletivo heterogêneo, caracterizado por múltiplas complexidades, oriundas da convergência de diferentes eixos de opressão. Sob a óptica da interseccionalidade, percebe-se a acentuação da vulnerabilização de pessoas em situação de rua com transtornos mentais, uma vez que, ao analisar as políticas públicas que tratam as questões de saúde dessa população, observa-se a predominância na discussão do uso problemático de álcool e outras drogas. Desse modo, portadores de transtornos mentais diversos - a exemplo da esquizofrenia e da depressão – que vivem na rua, apresentam-se ainda mais invisibilizados, evidenciando a necessidade e o desafio de se pensar uma linha de cuidado mais singular para esse grupo. Como toda mudança genuína necessita ser construída em bases sólidas, não há como discutir, portanto, a desconstrução de estigmas sociais e a reconstrução de políticas de promoção e cuidado em saúde para populações negligenciadas, sem trazer esse debate para a educação.

Consoante ao exposto, o presente trabalho tem como objetivo relatar a experiência do uso de grupos tutoriais voltados para o estudo das particularidades e complexidades do cuidado em saúde de grupos vulnerabilizados pela sociedade, como a população em situação de rua com transtornos mentais. Além disso, espera-se demonstrar a relevância de trazer para a formação médica um espaço de discussão heterogêneo, que vá além do biologicismo, capaz de contribuir com diferentes pontos de vista na construção de práticas de assistência centradas na integralidade dos indivíduos, a partir de uma visão multidimensional da saúde.

O contexto da experiência foi a disciplina de Saúde da Comunidade II, do 2˙ período do curso de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), campus de Macaé. O grupo foi composto por 10 (dez) discentes do 2˚ período e 1 (uma) docente, no papel de tutora. Foram realizados 12 encontros semanais, no período de 21 de junho a 20 de setembro de 2021.

A metodologia utilizada baseou-se na problematização como estratégia de ensino-aprendizagem.  As tutorias foram organizadas a partir da lógica do Arco de Maguerez, cumprindo cinco etapas: 1. observação da realidade, na qual foi realizada uma tutoria inicial com a apresentação da temática de trabalho (cuidado em saúde das pessoas em situação de rua) e a proposição da escrita de um diário dos discentes, no qual deveriam ser relatadas as impressões e reflexões individuais, ao final de cada encontro; 2. identificação de pontos-chave, na qual foram promovidas rodas de conversa com convidadas cujas experiências se aprofundaram em diferentes recortes da temática geral, permitindo, a partir de uma análise crítica, a identificação dos pontos essenciais para a compreensão do problema; 3. teorização, na qual o grupo recorreu às bases de dados de publicações em saúde, a fim de pesquisar e selecionar na literatura existente os trabalhos e artigos mais relevantes e congruentes com o recorte escolhido para leitura e fichamento; 4. hipóteses de solução e 5. aplicação à realidade, as quais foram cumpridas em conjunto, a partir da redação de dois trabalhos que sintetizassem e propusessem intervenções para as problemáticas levantadas, sendo um individual e um em grupo.

Ao final da experiência, foi possível constatar que os profissionais de saúde estão sujeitos às mesmas construções sociais que marginalizam os viventes de rua. Sob essa lógica, não se pode entender a sociedade como uma entidade dissociada de seus indivíduos. Estes, não apenas estão sob a sua influência, como também são responsáveis por construí-la na forma como ela se apresenta. Desse modo, quando se fala no preconceito institucional sofrido pelas pessoas em situação de rua, o fato é que, muitas vezes, a própria equipe impõe barreiras de acesso, sendo este um dos desafios de gestão nos serviços de saúde que compõem portas de entrada para o sistema.

Ademais, verificou-se que o estigma em torno das pessoas em situação de rua, especialmente aquelas com transtornos mentais, muitas vezes também é responsável por uma falha no cuidado ofertado, visto que, sinais como histeria e confusão mental, por exemplo, costumam ser associados à condição de adoecimento mental, desconsiderando diversas condições clínicas que poderiam desencadear episódios semelhantes. A partir disso, é possível perceber a ocorrência de um fenômeno "acesso-barreira", no qual o direito de acesso à saúde está aparentemente sendo cumprido, uma vez que o indivíduo chega ao serviço, porém não é efetivado, uma vez que o usuário não encontra o acolhimento e a resolutividade para a sua demanda.

Não se pode contestar, ainda, que a intersecção de alguns eixos de opressão é convergente nas populações negligenciadas no Brasil, sendo os marcadores de raça, gênero e social os mais prevalentes. Na população em situação de rua não é diferente. Sob esse aspecto, é necessário pontuar que, quando o viver na rua é cruzado também por uma condição de adoecimento mental, a construção de vínculo entre profissional e usuário torna-se especialmente importante, pois permite que o paciente se abra para a escuta e para o processo de cuidado, potencializando a chance de adesão ao tratamento.

Além disso, enquanto parte de um coletivo, que é a sociedade, é preciso reconhecer que todos estamos sujeitos a reproduzir preconceitos. Enquanto cidadãos, é, portanto, responsabilidade individual a busca pelo esclarecimento necessário à desconstrução e à reconstrução do olhar acerca da população com transtornos mentais em situação de rua, de modo que a vivência dessas pessoas não seja resumida à rua e ao adoecimento mental. No entanto, enquanto futuros profissionais de saúde, é indispensável que pensemos também institucionalmente, a fim de que a linha do cuidado para esses indivíduos não seja pensada restringindo-os a tais condições. Para isso, ações de educação em saúde voltadas a essa temática, ainda na formação médica, constituem o caminho mais sólido, uma vez que a universidade não é apenas estrutural, mas também, estruturante. Nesse sentido, o uso da metodologia ativa baseada na problematização possibilitou aos estudantes identificar os diferentes problemas no cuidado em saúde da população vivente de rua, e, a partir deles, buscar lógicas de causa e consequência que fornecessem um melhor entendimento da problemática. Além disso, ao longo do processo, os alunos enfrentaram a responsabilidade individual e coletiva na proposição de melhores práticas de intervenção, sendo protagonistas da sua formação.

Portanto, revela-se, a partir dessa experiência, que o uso das tutorias e da problematização possui amplo potencial na formação médica, sendo capaz não apenas de ampliar a noção de cuidado em saúde para além da biologia e de sensibilizar os estudantes para realidades frequentemente negligenciadas, como também de transformar suas próprias vivências e relações ao longo do processo de aprendizagem. Por fim, a principal relevância dessa experiência ultrapassa a remodelação do ensino e se constitui no espaço dado ao invisível, possibilitando a formação de profissionais mais conscientes do seu papel social, capacitados para lidar com demandas complexas, de forma humana e responsável.