Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Maternidade na Rua: uma análise biopsicossocial da saúde das mulheres que gestam em situação de rua
Luiza Soares de Miranda Lino, Lara Barreto Cardoso, Yasmin do Carmo Lima, Ana Livia de Souza Crotti, Melissa Souza Figueiredo, Laura Ruana de França Ferreira, Gabriel da Conceição Veiga, Kathleen Tereza da Cruz

Última alteração: 2021-12-14

Resumo


A rua possui significados e representações distintas a depender do indivíduo, podendo ser definida como um ambiente vivo, de construção dinâmica e coletiva. Consiste em espaço de transição, que pode ser ocupado para expressão de sentimentos, locomoção, trabalho e, também, moradia. Nessa conjuntura, ao mesmo tempo em que a rua é um território rico em singularidades de vivência, também é um espaço hostil, que escancara as desigualdades e submete os que vivem nela a diferentes formas de violência, sociais e institucionais. Dessa forma, é possível descrever a rua como um ambiente anômico, na medida em que nela os limites sociais encontram-se, muitas vezes, frágeis ou inexistentes, relativizando o que é justo ou injusto, legítimo ou ilegítimo, a depender das construções sociais em torno dos atores envolvidos.

Sob essa perspectiva, é necessário pontuar que, no Brasil, os diferentes eixos de opressão que guiam essas construções convergem para pontos muito bem definidos, sendo os marcadores sociais de raça, gênero e território os mais marcantes na produção das vulnerabilidades. Logo, não é difícil imaginar que a vivência das mulheres que gestam na rua é atravessada por múltiplas camadas de complexidade, as quais impõe sobre elas o estigma da incapacidade de serem mães. Dessa forma, evidencia-se a necessidade de um olhar mais atento e singular para a maternidade na rua e seus desdobramentos em saúde, sendo o objetivo deste trabalho desenvolver uma análise crítica-reflexiva acerca dos enfrentamentos que atravessam a vivência dessas mulheres, a partir de uma dimensão biopsicossocial da saúde. Além disso, visa-se contribuir para a construção de conhecimento, descrevendo as principais falhas institucionais reproduzidas para com essa população.

O artigo apresenta os resultados de pesquisa desenvolvida no período de 21 de junho a 20 de setembro de 2021, durante os encontros tutoriais que ocorreram na disciplina de Saúde da Comunidade II, do 2º período do curso de Medicina, nos quais realizaram-se rodas de conversa com convidadas que possuem experiência profissional e/ou pessoal na temática “Pessoas em Situação de Rua”, tendo sido aqui citadas com nomes fictícios. Tais discussões despertaram o interesse no grupo de pesquisa para a escolha do recorte desta revisão de literatura, a qual trata sobre maternidade na rua. A busca dos artigos científicos foi realizada nas bases de dados Lilacs, Scielo, BVS, PubMed e Google Acadêmico, utilizando os descritores: “pessoas em situação de rua”, “gravidez”, “gestantes”, “mulher” e “pré-natal”. Além disso, o critério de seleção dos artigos envolveu a restrição dos resultados aos idiomas inglês e português e ao Brasil como local de realização do estudo. Não houve restrição do intervalo do ano de publicação. Dessa forma, foram selecionados dezesseis artigos que compõem esta revisão, os quais abordam a temática das mulheres gestantes em situação de rua.

A partir da revisão, percebeu-se que apesar do estigma social descartar as singularidades das viventes de rua (VR) e do atravessamento individual de marcadores sociais, a maioria das mulheres vivem na rua possuem experiências em comum que resultaram nessa condição: as violências as quais foram submetidas no decurso da vida. Entretanto, a rua é um local de exposição intensa quando se é mulher, devido à crença de dominação sobre os corpos femininos. Com isso, em busca de proteção, há a procura da construção de laços afetivos, geralmente com companheiros, sendo relacionamentos que, por vezes, resultam em novas violências, majoritariamente sexuais, podendo culminar na maternidade, sonho de algumas, mas não de todas. Assim, o foco deste trabalho voltou-se para as “mães de rua”- aquelas que desejam a maternagem e tentam exercê-la com a idealização de um futuro com a criança, perspectiva nem sempre concretizada, configurando uma problemática intergeracional.

Nesse sentido, em sincronia com a gestação emerge o sentimento de insegurança, relacionado às inconstâncias de sustento, à ausência de contato familiar e, comumente, da figura paterna, mas principalmente à incerteza da permanência ou não da criança consigo. Desse modo, essas mulheres são julgadas como incapazes de serem mães, apenas por se distanciarem do modelo social hegemônico. No caso de mulheres cujo meio de subsistência é a prostituição e que fazem uso de drogas, a privação do direito à maternidade é frequentemente imposta, sem qualquer oferta de assistência, emocional ou jurídica. No que se refere à dependência química, tal situação pode desencadear um processo de “gravidez de repetição”- relacionado ao planejamento de ser mãe atravessado pela retirada sequencial das crianças de suas mães, por parte do Estado. Ademais, o desejo da maternidade mostra uma “mudança de postura” nas mães de rua que são usuárias, por meio da redução do uso de drogas durante a gestação.

Além disso, foi possível constatar que a maioria das mulheres VR é negra, pobre, usuária de substâncias psicoativas e portadoras de algum transtorno de ordem psicológica. Frente à convergência de tais marcadores sociais, a construção social considera as viventes de rua como mulheres sem valor, não dignas dos direitos mais básicos, incluindo o da maternidade. Nesse aspecto, é possível observar, ainda, que a negligência dos direitos básicos da mulher justificada na defesa dos direitos da criança, constitui prática insensível e nada resolutiva, tendo em vista que, após o afastamento do infante, geralmente, não há preocupação a longo prazo das instituições para com o futuro desses menores. Por consequência dessa ação arbitrária e violenta, muitas mulheres VR não procuram os serviços de saúde para o devido acompanhamento pré-natal, com medo de perderem suas crianças. Portanto, o modelo de maternidade construído a partir de critérios como estabilidade financeira, moradia, emprego e presença da figura paterna, não só exerce poder sobre os corpos e as escolhas das mulheres VR, como também restringe o acesso delas a uma rede de assistência adequada para a gestação e a vivência da maternidade.

Compreende-se, portanto, que a maternidade na rua é atravessada por múltiplas complexidades, evidenciando, ainda, que o estigma construído em torno dos viventes de rua age como forte instrumento de marginalização, afastando-os de sua cidadania, uma vez que impõe barreiras institucionais para a efetivação de direitos básicos, como o acesso à saúde. Assim, no caso das mulheres gestantes, a imagem preconceituosa e reducionista de suas vivências é também utilizada para privar-lhes do direito à maternidade. Ao contrário, o aparelhamento das instituições é comumente utilizado para condená-las, a partir de um julgamento autoritário, o qual coloca os Direitos da Criança acima dos Direitos da Mulher, quando deveriam ser complementares.

Por fim, é imperativo que o cuidado em saúde seja entendido em uma dimensão biopsicossocial, de modo que as subjetividades sejam consideradas, a fim de que a autonomia dessas mulheres seja restaurada.  Sob essa lógica, entende-se que, apesar de haver um crescente olhar para as necessidades da população VR, ainda são muitos os desafios para a concretização da promoção de um cuidado integral a essas pessoas, os quais se amplificam quando a análise é feita a partir de uma lente interseccional, como a escolhida pelo grupo. Assim, acredita-se que os dados e discussões aqui levantados contribuem para um melhor enfrentamento das demandas complexas que um olhar multidimensional da saúde apresenta, somando para a construção de uma geração de profissionais mais preparada para constituir as redes de apoio necessárias a essas mulheres e suas crianças.