Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Acolhe(dor): Relato de Experiência de Grupo de Apoio Online a Enlutados pela Covid-19
Luciana Bicalho Reis, Ana Luiza Magalhães Gonçalves, Karina Cajaiba da Silva, Maiara da Silva, Aline Rocha de Morais Fiorese, Carla Brunetti Lambert, Rafaela Augusta Magalhães Oziel

Última alteração: 2021-12-16

Resumo


A pandemia da Covid-19, reconhecida em 11 de março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), inaugurou mudanças de amplitudes globais para a humanidade. Além da exigência de distanciamento social e de seus desdobramentos nos âmbitos econômicos, emocionais e sociais, colocou a humanidade diante do avassalador número de mortes, ampliando nossa consciência frente à finitude. Com o escore de mais de 5 milhões de mortes ao redor do mundo até o fim de julho de 2021, instaura-se o que se denomina de luto coletivo, o que contribui para o agravamento da vivência do luto vinculado à experiência da morte. O distanciamento social apresenta-se como um agravante a este quadro de luto em larga escala, uma vez que, tornaram-se inviáveis os rituais de despedida tradicionais e o acompanhamento das pessoas adoecidas durante sua hospitalização e no fim da vida, dificultando tanto a vivência e enfrentamento da experiência de luto dos sobreviventes quanto os processos de morte dos infectados. A saber, o luto resulta do rompimento de vínculos afetivos e abrange uma ampla categoria de respostas biopsicossociais, com manifestações fisiológicas, cognitivas, psicológicas e sociais, como uma demanda de reorganização neuronal, como um processo de acomodação e aprendizagem, caracterizando uma transição psicossocial. Para Worden o processo de luto requer empenho e implicação do enlutado. Essa compreensão do luto enquanto processo a ser enfrentado ativamente pelo enlutado pode balizar a intervenção psicológica. Segundo o mesmo autor, o trabalho do luto consiste basicamente na resolução de quatro tarefas. A tarefa I do luto consiste na aceitação da realidade da perda; a tarefa II, tem-se a necessidade de processar a dor do luto e vivenciá-la; enquanto a tarefa III corresponde aos ajustamentos a um mundo sem a pessoa morta, o que engloba ajustes externos referentes aos papéis sociais e mudanças contextuais, os ajuste internos que demandam uma reestruturação do próprio self e os ajustes espirituais; por fim, a tarefa IV evoca a necessidade de encontrar conexão duradoura com a pessoa morta em meio ao início de uma nova vida. Essas tarefas não se mostram lineares, podendo se sobrepor ou serem retomadas durante o processo de luto. Como exposto, o contexto da pandemia trouxe consigo diferentes fatores de risco para o processo de luto. Assim, com base nesta realidade, foram ofertados Grupos de Apoio ao Luto no âmbito do Projeto AcolheDor, vinculado ao curso de psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. Este trabalho tem o objetivo, portanto, de relatar a experiência de um dos grupos de apoio a pessoas enlutadas mediado por estagiárias do curso sob supervisão docente. Tratou-se de um grupo fechado, composto por 8 pessoas (homens e mulheres) com idades variando de 24 a 48 anos. Todos perderam familiares em decorrência do COVID-19, sendo estes marido, pai, mãe, irmão e tio. O tempo das perdas variou de menos de um mês a seis meses e um ano. O grupo, num total de 10 encontros, teve frequência semanal, com duração de cerca de 1h e 30 minutos e aconteceram entre maio e julho de 2021. As atividades desenvolvidas foram planejadas e discutidas em supervisão com a professora-orientadora e foram norteadas pelo modelo de luto apresentado em Aconselhamento do Luto e Terapia do Luto: um manual para profissionais da saúde mental de Worden (2013). Assim, a proposta estruturou-se como uma intervenção focal e breve, cujo objetivo foi ajudar o enlutado a resolver os conflitos de separação e facilitar a adaptação ao luto. Os primeiros encontros foram marcados por grande manifestação emocional. Sabe-se que durante a pandemia muitos enlutados sentiam-se sobrecarregados com sua perda. Ora porque haviam perdido mais de um membro da família, como quatro participantes, ora porque o contexto de vida, dadas as circunstâncias da pandemia, não foi capaz de fornecer apoio social suficiente. Alguns participantes, relataram não ter espaço para expressar seus afetos pois precisavam ser fortes por outros membros da família – a exigência de que o enlutado suprima a manifestação dos afetos decorrentes da perda pode sobrecarregá-lo, levando à vivência de um luto complicado, mais especificamente um luto adiado ou suprimido. Os participantes compartilharam as emoções e afetos vividos em função da perda: tristeza, negação, raiva, revolta e culpa compareceram como sendo relevantes. Todos relataram, ainda, sentir a ausência dos rituais de despedida, como velórios, cultos religiosos e sepultamentos tradicionais, como algo muito doloroso e que estava dificultando seu processo de luto. Na perspectiva deste trabalho o enlutado tem como primeira tarefa reconhecer a perda e, por isso, a importância dos rituais tradicionais de despedida já que eles auxiliam o enlutado a entrar em contato e validar a morte. Deste modo, algumas pessoas podem apresentar dificuldade de reconhecer a morte, oscilando entre sua negação e aceitação nos primeiros momentos, como pode ser observado no relato dos participantes. Ao abordarmos os mecanismos de proteção presentes no processo de luto, a rede de apoio foi apontada pelos participantes como principal fator protetivo, sendo os mais mencionados: família, amigos, comunidade religiosa e o próprio grupo de apoio do Projeto AcolheDor. O suporte social percebido é muito importante ao longo do processo de luto, na medida que ajuda a suavizar os efeitos adversos da perda. Contudo, o suporte tende a diminuir com o passar dos primeiros meses após a morte, apesar do enlutado ainda demandar apoio, o que pode ocasionar a insatisfação com a rede de apoio, como relataram alguns dos participantes. Além disso, refletiu-se sobre práticas de autocuidado que os participantes têm adotado e produzem efeitos importantes sobre sua saúde e sentimento de bem-estar. Foram citadas por eles a prática de exercícios físicos, cozinhar, o uso de homeopatia, a psicoterapia individual, dedicação ao trabalho, leituras e investimento em hobbies como estratégias de enfrentamento com bons efeitos. Nos últimos encontros trabalhou-se a construção da compreensão de que o vínculo afetivo com quem morreu não acaba, mas deve tornar-se de uma outra natureza, o chamado vínculo contínuado. Os participantes reconhecem o caráter transformador do luto, da dor aguda como característica transitória, da retomada da vida como possibilidade de honrar a memória de quem se foi e da importância de que o enlutado seja ativo neste processo. Ao avaliarem em retrospectiva seus processos de luto, os participantes demonstraram estar lidando com tarefas diferentes do processo. Alguns participantes relataram como encontrar no grupo espaço de acolhimento de sua vivência, de validação de seus afetos, de aprendizagem e, sobretudo, de apoio mútuo foi importante para lidar com sua experiência de perda. Ademais, eles referiram-se ao grupo como espaço que possibilitou autoconhecimento, expressão dos afetos e obtenção de apoio social e emocional. Este trabalho, amparado no que propõe Worden sobre a intervenção breve e focal com enlutados, demonstrou que uma proposta estruturada a partir das necessidades dos participantes, com número de encontros relativamente pequeno pode ter efeito importante sobre a saúde mental dos enlutados, evitando ou diminuindo-se com isso a possibilidade de luto complicado. Isso aponta para a possibilidade de que grupos de apoio ao luto sejam oferecidos por profissionais habilitados nos mais diferentes contextos como Unidades Básicas de Saúde, hospitais e escolas, de modo a beneficiar o maior número de pessoas possível.