Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Ensinar e aprender sobre violências: um relato de experiência(s)
Michelle Alves, Jéssica Bruna Borges Pereira, Mariana Hasse

Última alteração: 2022-01-31

Resumo


Apresentação: Abordar o tema da violência na educação médica éfundamental para a formação de profissionais sensíveis ao tema equalificados para a produção do cuidado às vítimas. Além do conhecimentotécnico e sensibilização para manifestações da violência na sociedade comoum todo, discutir o problema e suas diversas faces, possibilita reflexõespessoais. Isso porque, por ser um fenômeno altamente prevalente, a chancede um estudante/profissional da saúde já ter vivenciado situações deviolência - como vítima ou autor - é grande. Esse processo de contato com aspróprias experiências nem sempre é fácil, mas é importante para ressignificarexperiências e transformar relações. Este relato é sobre a experiência decursar/ofertar um componente curricular que aborda prioritariamente o temadas violências. Desenvolvimento do trabalho: O componente curricular deSaúde Coletiva II, oferecido para um curso de graduação em Medicina deuma universidade federal mineira, tem como foco o estudo do fenômeno daviolência, suas manifestações, consequências e produção do cuidadointegral. Dentre outros pontos, são abordados temas como a escravidãomoderna, violência institucional, contra mulheres, crianças, populaçãoLGBTQIA+, idosos e aborto previsto em lei para casos de estupro. Para oentendimento da complexidade do fenômeno, são discutidos conceitos comovulnerabilidade, determinantes sociais de saúde e ferramentas de cuidado eprevenção da violência. Durante esse percurso, muitos estudantesrelembram – ou descobrem – situações de violência que já vivenciaram emsuas vidas pessoais. Ao longo dos semestres em que o componente vêmsendo oferecido com esse formato (desde 2016), relatos de todos os tipos jásurgiram, alguns feitos de forma pública, em sala de aula, e outros, de formaprivada, muitas vezes, como pedidos de ajuda. Já vimos estudantes tomando
consciência de ter vivenciado situações análogas à escravidão durante ainfância pobre e sem amparo de cuidadores, estudantes homensheterossexuais e cisgêneros que se perceberam autores de violência contrapessoas LGBTQIA+ durante o desenvolvimento de um trabalho sobre o tema,e o impacto da perda de um colega de curso que se suicidou. Um dos relatosmais impactantes que ouvimos surgiu a partir de um caso fictício, sobre umaadolescente que é estuprada por um tio e não consegue apoio familiar,disponibilizado para a discussão sobre a ficha de notificação compulsória daviolência. A situação relatada pela estudante - que ficou muito mobilizada,pois o caso não era fictício para ela - foi de um episódio vivido quando tinhadez anos e sofreu uma tentativa de estupro por parte de um tio. Segundo elacontou, outras crianças da família, de diferentes gerações, também passarampela situação e o abafamento desses crimes pela família – que temconhecimento, mas não toma providências – dificultou muito o processo deressignificação da experiência, já que diversas vezes, foi obrigada a convivercom o agressor enquanto ele era tratado como um membro querido dafamília. Além de ouvir durante anos falas de naturalização e banalização daviolência como “mas todo mundo tem defeitos”, em uma situação, já sendoadulta, a vítima foi obrigada a posar para uma fotografia com o agressor parao registro de uma comemoração de aniversário. Resultados: O contato que ocomponente proporciona com problema da violência pode ser muito sensívelpara estudantes que vivenciaram situações análogas às estudadas. Aodelimitar e caracterizar o que é a violência e como ela se manifesta edesnaturalizar comportamentos, alguns se lembram de experiências vividas,enquanto outros conseguem nomear situações que não entendiam como talaté aquele momento. Ao se aproximar do tema da violência como umproblema de saúde pública – que afeta muitas pessoas -, conhecer suagênese e ferramentas para lidar com ela – desde legislação e políticaspúblicas existentes, até estratégias terapêuticas para a produção do cuidado– muitos podem amadurecer a visão que possuem sobre suas própriasexperiências e conseguem falar sobre elas pela primeira vez. Ao reconhecera violência como um problema de saúde, os estudantes buscam por ajuda,muitas vezes com as docentes responsáveis pelo componente que, em umprocesso similar ao que ensinam como necessário para a produção de um
cuidado adequado, fazem uma escuta acolhedora, discutem possibilidadesde cuidado e favorecem acesso aos dispositivos existentes na rede deserviços. Além disso, visando evitar prejuízos à formação dos estudantes eprejuízos ao semestre, sempre que possível, as atividades que possuemalgum gatilho são adaptadas para que os estudantes sensíveis possam seaproximar do tema com mais delicadeza. Após conseguir falar sobre aviolência sexual com as professoras e acolher a experiência dentro de si, aestudante do caso relatado acima conseguiu falar com sua tia – esposa doagressor – e com seus pais sobre o que lhe ocorreu. Entretanto, mais umavez, a normalização e relativização da violência se fizeram presentes e a tiasaiu em defesa do marido/agressor enquanto seus pais se viram imponentesperante toda a situação, principalmente - como alegado por eles -, apóstantos anos do acontecido. Esse caso demonstra não só a importânciaacadêmica do debate sobre violência nos cursos de saúde, mas também ovalor do acolhimento institucional ao estudante, haja vista que, muitas vezes,é apenas nesses espaços que a vítima de violência encontrará validação dossentimentos que envolvem sua experiência, dada a falta de apoio familiar.Considerações finais: O estudo sobre o tema das violências durante aeducação médica é fundamental. Devido à defasagem desse debate nosperíodos de ensino fundamental e médio, muitos estudantes – futurosprofissionais da saúde -, apenas terão acesso a informações de qualidade,capazes de promover o pensamento crítico, durante a graduação. Além deformar médicos mais preparados para acolher as vítimas de forma adequadae produzir o cuidado necessário, muitas vezes é o primeiro passo para oamadurecimento de experiências pessoais que até então geravam apenasimpotência. O acolhimento acadêmico é imprescindível quando situaçõescomo as relatadas surgem e, para isso, os docentes não só devem colocarem prática o que ensinam enquanto acolhimento ético, mas tambémprecisam conhecer a rede de serviços disponíveis para o estudante quedesejar/precisar. O processo de amadurecimento que esse processo decuidar/ser cuidado, ensinar/ser ensinado gera é mútuo e nele, estudantes edocentes aprendem a lidar com as situações de violência de forma maissaudável e empática.