Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A reorganização do processo de trabalho na atenção primária no primeiro ano da pandemia: relato de um caso.
Elisete Casotti, Julya Vittória de Azevedo dos Santos

Última alteração: 2021-12-19

Resumo


No campo de  atuação dos profissionais de saúde, desastres se diferem de situações de  emergências porque,  no primeiro caso, trata-se de um acontecimento que envolve e atravessa a todos, que não tem contornos imediatamente claros, mas que mobiliza instituições e grupos sociais para o seu manejo. A pandemia por Covid-19 é um exemplo de desastre que está exigindo de todo o sistema de saúde, e também de outros setores, ações  e  respostas  rápidas,  em meio a insegurança, medo e a aprendizados  simultâneos.  As unidades de atenção primária à saúde do Sistema Único de Saúde  são porta de entrada para a  maior parte da demanda sintomática e também para aqueles que recorrem para ajuda diagnóstica. Com a situação pandêmica, os serviços de saúde bucal tiveram a agenda programada suspensa e os profissionais ficaram à disposição da Unidade para apoiar a operação assistencial. Esse estudo teve por  objetivo mapear e analisar os momentos de reorganização do  processo de trabalho e  dos fluxos cotidianos das Unidades no ano I da pandemia.  Pesquisa de natureza qualitativa, descritiva e exploratória, com técnica de coleta de dados por meio de entrevistas semi estruturadas e análise de acordo com o proposto por Kaufmann. Os participantes da pesquisa foram 15 de 21 dentistas (71%) da Estratégia de Saúde da Família (ESF) da rede municipal de saúde de uma cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro. Critério de inclusão: estar, no mínimo 1 ano,  em atividade na Unidade Básica de Saúde e  ter permanecido 10 semanas, a partir de 16 de março,  em atividade ininterrupta. Na pesquisa,  2/3 das participantes são mulheres, com idades entre 31 anos e 59 anos de idade, todas na cor branca, possuindo entre 8 anos e 35 anos de formadas. Todas  participantes possuem especialização (sendo 93% na área da Saúde da Família) e 03 possuem mestrado concluído e 01 em andamento; com  tempo de atuação na ESF entre  06 a 16 – perfil que indica um grupo com qualificação acadêmica e experiência significativa na Estratégia. Foram caracterizados 4 momentos na organização do enfrentamento da pandemia. O momento I, que compreendeu o final do mês de março e abril, é caracterizado pelo reconhecimento da transmissão comunitária do coronavírus no território nacional. Localmente, incluiu a publicação da primeira  medida de isolamento social, entre os dias 26 de março e 04 de abril, com o fechamento do comércio não essencial, determinado pelo poder público local. Os participantes descreveram esse momento a partir de sentimentos como o medo, a insegurança, o atordoamento, o pavor, o pânico e o choque. Com a publicação do decreto, as ruas da cidade ficaram vazias e a ida ao trabalho, que não foi suspenso, significou experimentar a radicalidade dessa nova e desconhecida situação. Outra face do medo foi alimentada pelas informações desencontradas: a política falando uma coisa e a ciência outra. Outro aspecto foi a insegurança relacionada à possibilidade de contaminar os familiares, de “levar a doença para casa”, o que aumentava ainda mais a tensão. Esse início foi também marcado por muitas indefinições na organização do processo de trabalho, com a paralização total dos atendimentos eletivos, com afastamento dos usuários das unidades e o atendimento somente medicamentoso das urgências, evitando a realização de procedimentos clínicos intra-bucais. O momento II, situado no mês de maio, foi caracterizado ainda pela insegurança dos profissionais face a complexidade da situação sanitária, pela escassez de informações e pela necessidade de promover  mudanças na organização do processo de trabalho na unidade. Nesse mês houve aumento do volume de casos de Covid-19, somada a uma pressão pelo retorno dos cuidados de urgência odontológica. Nessa fase de reorganização, os relatos indicavam desde a ruptura da sólida agenda de procedimentos, que deslocaram a equipe de saúde bucal do consultório odontológico, até a necessidade de modificação do processo de trabalho dos demais profissionais da ESF, colocando no centro da atenção o enfrentamento da Covid-19. Nesse cenário de reorganização, a maioria dos relatos converge para a existência de  participação e apoio entre os membros da equipe. Nessa fase, a incerteza foi a grande aglutinadora, palavras e expressões  como entrosamento, integração, equipe solidária, preocupação em um apoiar o outro, coesão e ajuda mútua foram utilizadas para descrever a relação interprofissional.  Entretanto, alguns entrevistados reportaram também um cenário de aparecimento de  tensões no trabalho em equipe. Com a redução das atividades clínicas, os profissionais de saúde bucal assumiram tarefas até então não executadas, situação  apontada como geradora de alguns estranhamentos na equipe. A reunião de equipe, que  é um dispositivo estruturante do trabalho na Estratégia Saúde da Família, seja para planejamento de ações, comunicações técnicas, discussões colaborativas  de casos ou mesmo espaço para manejo de conflitos intra e inter equipes foi suspensa. O modus operandi,  adotado pela gestão e reproduzido na maioria das equipes, foi caracterizado como de “distribuição de informações ou  tarefas pela enfermeira”. Se no início a equipe se uniu bastante, depois “todo mundo ficou muito atarefado” e as conversas migraram para o WhatsApp®, o que foi sintetizado como um “trabalho intenso e solitário”, a partir de um  protocolo pré-definido de ações intra unidade. O momento III corresponde aos meses de junho a agosto e representa o cotidiano da Unidade já reorganizado, com novos fluxos e nova divisão do processo de trabalho pactuada. A  consolidação da comunicação da gestão central exclusivamente com as enfermeiras parece ter gerado uma linha vertical de transmissão de informação. A maioria dos profissionais das eSB assumiram inúmeras atividades na unidade, particularmente aquelas  de vigilância:  preenchimento de consolidados diários de casos e suspeitos; monitoramento dos casos sintomáticos  respiratório por telefone;  coleta de teste rápido e etc. Essa reorganização colocou a saúde bucal “habitando” e realizando tarefas em diferentes setores da Unidade, o que provocou ora dificuldades, ora descobertas. O momento IV corresponde aos meses de setembro a dezembro de 2020. E são os meses em que uma nova rotina já tinha se consolidado, e com ela os efeitos acumulados da trajetória anterior. Diminuiu em parte a  pressão da demanda dos sintomáticos respiratório por pronto atendimento, e significou a possibilidade de retomar o acesso a consultas e atendimentos que vinham com a agenda muito restritiva. É também período em que os profissionais foram imunizados e as férias voltaram a ser autorizadas. Na saúde bucal, houve revisão do protocolo com retorno do atendimento dos casos eletivos prioritários (2 por turno). Entretanto, os muitos meses que se passaram, desde o início da pandemia, foram desgastantes para as equipes e parte desse efeito assumiu características de frustração, banalização, acomodação  e  exaustão – às vezes associados, às vezes isolados. A análise desse quadrimestre indica que a pandemia não poupou as equipes e a gestão do aparecimento de novos e do agravamento de velhos problemas, para além dos desafios da rotina do trabalho sob novos fluxos e  protocolos,  mexeu  com a qualidade das relações entre os profissionais e na qualidade do ambiente de trabalho. Vários participantes apontaram que o ano estava acabando com profissionais muito cansados e desestimulados.  E, ainda com a expectativa da chegada de uma nova onda de contaminação. Esses relatos sugerem,  que a ideia do acolhimento e da escuta, tão cara para o trabalho da atenção primária,  não apoiou o cuidador – que foi tratado só como um trabalhador.