Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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A violência doméstica e o sofrimento psíquico entre mulheres: como os serviços especializados do interior do Nordeste têm ofertado o cuidado?
Ana Edilza Cândido Fernandes, Ana Kalliny de Souza Severo, Débora Fernanda Costa de Andrade

Última alteração: 2022-01-10

Resumo


Apresentação: Um dos principais desafios contemporâneos constitui-se o enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres. Esta pode ser classificada como uma das principais formas de violação de seus direitos, pondo em risco seu direito à vida, à saúde e à integridade física, além de ser um fenômeno que se manifesta dentro de suas próprias casas, praticado, por sua maioria das vezes, pelos seus próprios companheiros e familiares. Ainda, constitui-se como um problema que atinge todas as classes sociais, em todas as culturas, agravando-se de acordo com marcadores, como raça, etnia, classe social, dentre outros. Ademais, as pessoas que questionam e/ou fogem dos padrões de gênero terminam por vivenciar experiências de sofrimento, que são categorizadas através de sintomas psicopatológicos e de adoecimento psíquico. Esses fatores emergem por meio da criação de estereótipos de comportamentos, que provocam implicações na descrição de transtornos mentais localizados nos manuais de diagnósticos. Nesse sentido, eles estabelecem modelos baseados na cis-heterossexualidade, tomando como patológico tudo aquilo que desvia dessa normatividade e favorecendo visões gendradas dentro dos diagnósticos. Dessa forma, ser mulher em uma sociedade instituída pelo patriarcalismo implica em constantes opressões e circuitos de controles, em dominações da violência masculina sobre os corpos femininos e da psiquiatria sobre seus sofrimentos e suas dores. Devido a isso, a constituição de redes de cuidado formais que promovam um espaço de escuta e acolhimento, em que as mulheres possam expressar seus relatos e sua subjetividade, trocar conhecimentos e experiências e conhecer quais são os direitos e serviços públicos ofertados configura-se como uma proposta essencial na defesa dos seus direitos e constitui-se como um avanço para o fortalecimento e efetivação dos serviços que as protegem. Portanto, esta pesquisa tem como objetivo analisar o atendimento fornecido às mulheres que são atendidas nos serviços especializados de saúde e assistência social que apresentam sofrimento psíquico grave e tem histórico de violências domésticas em um município do interior do Nordeste.

Desenvolvimento do trabalho: trata-se de uma pesquisa qualitativa, alinhado aos princípios da Análise Institucional, um modelo de pesquisa-intervenção, cuja concepção teórico-metodológica provoca a investigação e análise dos processos instituídos e instituintes que atravessam a sociedade. A partir dessa investigação, identificamos os analisadores que sinalizam para permanências e mudanças no cuidado às usuárias atendidas pelas redes formais de cuidado. Logo, a pesquisa foi realizada no Centro de Atenção Psicossocial II – CAPS – e Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS – de uma cidade do interior do Nordeste. Participaram dessa pesquisa os profissionais dos referidos serviços e quatro mulheres em situação de sofrimento psíquico e com histórico de violência doméstica. Os procedimentos consistiram na análise das entrevistas promovidas com usuárias atendidas, das rodas de conversas realizadas com os profissionais e de registros em diários de pesquisa. Entre os períodos de março de 2019 a março de 2020, foram realizadas rodas de conversas com os profissionais, para introdução da problemática, visitas institucionais aos CAPS II e ao CREAS, para identificação das usuárias, e entrevistas com quatro mulheres atendidas pelos serviços de atenção especializada. Por fim, foram estabelecidos analisadores, isto é, dispositivos que põem em evidência o tipo de atendimento ofertado a essas mulheres, para investigação dos dados obtidos.

Resultados: Ao partir da violência contra a mulher enquanto uma instituição, foi possível perceber o fenômeno da naturalização da violência doméstica dentro dos serviços. Nesse sentido, mesmo com a existência de alguns casos, ao analisar os movimentos instituintes e instituídos que perpassam tais locais, não existem discussões entre os profissionais do CAPS acerca da temática da violência doméstica. Nesse sentido, há um desconhecimento ou pouca compreensão acerca das propostas de acolhimento às mulheres, como também dificuldade de manejo com essas demandas e de reconhecer e explicitar esse fenômeno. Além disso, há um silenciamento dos casos, uma vez que não existe uma percepção ampla da situação e ela é legitimada enquanto violência somente quando há agressões físicas, negligenciando os demais aspectos, como psicológico, patrimonial e sexual e desconsiderando a realidade repleta de vulnerabilidades a qual a usuária está inserida. É bastante visível ainda o predomínio de uma visão biologicista e individualista do sofrimento das mulheres, haja vista que seus sintomas são vistos através de uma ótica que visa sua supressão e a desconsideração das relações de gênero em seu amplo contexto, da estrutura socioeconômica e do histórico de violência. Decorrente de tais fatos, como a desconsideração das queixas, dos aspectos sociais e da história que está por trás dos sintomas, há uma redução da história vivida pela mulher à sua condição psiquiátrica no serviço CAPS e, por vezes, a culpabilização das usuárias sobre sua situação e sua saúde mental, colocando-a como única responsável pela sua realidade e por cuidar de si própria. Por outro lado, as mulheres consideradas loucas eram tidas como inaptas ao cuidado dos demais, principalmente dos filhos. Isso ocasiona uma certa dificuldade em efetivar o discurso e o sofrimento dessas mulheres. Sobre as equipes, é perceptível a responsabilização das profissionais do sexo feminino em abordar e discutir os cuidados nas redes formais. Apesar de atenderem usuárias comuns, há pouco diálogo entre o CREAS e o CAPS, sendo este entendido como atribuição de núcleos de saberes específicos, como a Psicologia e o Serviço Social, e não uma competência dos serviços, comprometendo a intersetorialidade das redes. Além disso, há uma desconsideração do aspecto interdisciplinar do cuidado, apontado através dos prontuários com poucas informações ou incompletos, o que prejudica a atuação multiprofissional estabelecida pela rede. É importante destacar que o patriarcado e o machismo enquanto instituições instrumentalizam e inserem as opressões como parte da estrutura social, ocasionando conjunturas de desigualdade. Consequentemente, assim como essas dinâmicas influenciam e se inserem diretamente em todas as estruturas da sociedade, eles atravessam, também, diversos serviços, principalmente os de atenção especializada, provocando limites ao serviço ofertada às usuárias.

Considerações finais: Diante do experienciado nesta pesquisa-intervenção, foi possível compreender ainda mais o quanto a violência doméstica está implicada na dinâmica dos serviços e na vida das mulheres. A partir dos dados analisados, constatou-se que a intersetorialidade nos serviços não foi efetivada, além de que não há discussões e pouco conhecimento dos profissionais acerca da temática da violência doméstica e das políticas disponíveis para as mulheres em situação de violência. Ademais, há o silenciamento dos casos e culpabilização das mulheres por sua situação, junto a biologização e individualização do sofrimento. Assim, a vida das usuárias é marcada por circuitos de controle, que se constituem diversos aparatos que constituem as violências que contra elas são acometidas. Configura-se, portanto, como de suma importância uma análise das práticas desses serviços, assim como refletir sobre a produção do cuidado que promova o direito à saúde mental. Destarte, faz-se mister a utilização de recursos, como o matriciamento, o Projeto Terapêutico Singular, junto a ações que se apoiem na Educação Permanente em Saúde, como meio instituinte das redes formais de cuidado, para conhecer e identificar a violência instituída nos saberes e nas práticas perpetuadas nos serviços, assim como reforçar a importância do papel dos profissionais em promover o cuidado através do reconhecimento a violência doméstica a qual estão inseridas, validação de seu discurso, legitimação de sua dor e fortalecimento para que possam sair dessa situação.