Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
Tamanho da fonte: 
A saúde autônoma zapatista: organização comunitária e cosmopolítica
Ana Paula Massadar Morel

Última alteração: 2022-01-07

Resumo


Apresentação

O Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN) e suas bases de apoio são formados predominantemente por indígenas falantes das línguas tzeltal, ch’ol, tzotzil e tojolabal que vivem na região de Chiapas, no México. O movimento veio a público a partir do levantamento armado de 1º de janeiro de 1994, quando reivindicou o fim das grandes propriedades de terra e dignidades para os povos indígenas e pobres, em um contexto de racismo e exploração. Desde então, o movimento é conhecido mundialmente por construir todo um modo de existência de maneira autogestionada e independente ao Estado mexicano e às instituições privadas, o que se convencionou chamar de autonomia zapatista. A autonomia está presente nas mais diferentes esferas da vida zapatista: educação, justiça, governo, trabalho, comunicação e saúde. A saúde autônoma é um pilar importante desta vida coletiva e tem como base a ação de promotores de saúde autônoma, que são indígenas da comunidade que atuam como educadores populares em saúde. Neste trabalho, buscaremos explorar como se dá a construção cotidiana da saúde autônoma, tendo como foco sua relação com a organização comunitária e a cosmopolítica dos indígenas tzotzil.

 

Desenvolvimento

 

Realizamos uma etnografia a partir de trabalho de campo feito em diferentes momentos dos anos de 2013 até 2017 em Chiapas. Tal experiência possibilitou conhecer diferentes espaços do movimento: ser aluna de tzotzil do Centro de Línguas Mayas Rebelde Autónomo Zapatista (CELMRAZ), um curso de castelhano e tzotzil voltado para alunos não-zapatistas na região de Oventic, conhecer diferentes comunidades onde vivem bases de apoio zapatistas, participando da formação de promotores de saúde autônoma.

No desenrolar deste trabalho etnográfico, nos parece importante partir de um respeito escrupuloso à “imaginação conceitual” dos interlocutores: o que pensam os indígenas zapatistas sobre saúde? Como se constrói a saúde autônoma no cotidiano? Tive a chance de conviver de maneira mais próxima com alguns promotores de educação e saúde autônoma. Posso considerá-los interlocutores privilegiados para a realização dessa pesquisa.

 

Resultados

Os zapatistas constroem clínicas autônomas, onde trabalham alguns médicos simpatizantes do movimento e buscam formar seus próprios promotores de saúde que vivem nas comunidades. Os promotores são indígenas zapatistas que recebem uma formação contínua para dialogar sobre os cuidados em saúde a partir da realidade dos territórios. Eles são escolhidos pelas assembleias e nelas discutem as questões da saúde de maneira ampliada. Os promotores são formados em três áreas diferentes que estão intimamente ligados aos saberes dos povos indígenas da região: parteras (parteiras), hierberos (conhecedor de plantas medicinais) e hueseros (trata dos ossos fraturados). A partir da valorização dos saberes indígenas, os promotores de saúde atuam não só com tratamento, mas com prevenção, promoção e educação em saúde, fazendo também alguns trabalhos integrados com as escolas autônomas.

Como as atividades dos promotores são muitas e envolvem questões fundamentais para a comunidade, as assembleias comunitárias indicam a criação de um Comitê de Saúde. Esse Comitê de Saúde será formado por pelo menos duas pessoas que possam ajudar nas tarefas que envolvem as mudanças na infra-estrutura da comunidade, como construir o local mais adequado para o banheiro, formas de lidar com o lixo, dentre outras.

Percebemos como a organização comunitária permeia todo o trabalho dos promotores de saúde: as causas, problemas, possíveis soluções da área de saúde devem ser debatidas nas assembleias, que através da sua auto-organização aponta e executa as ações a serem feitas. Os cuidados da saúde não são responsabilidade de um corpo de especialistas afastado da comunidade que detém o conhecimento biomédico - ainda que possam dialogar também com os saberes da medicina ocidental -, tampouco de indivíduos isolados que devem transformar seus hábitos para ter um “estilo de vida saudável”, mas da organização comunitária atravessada por forças políticas e também, pela relação com um cosmos, uma terra.

A própria concepção de saúde é ocupada pela noção de terra. Já que para ter saúde é preciso pertencer a um cosmos, permeado pelo respeito recíproco com os diferentes seres, e com isso caminhar para o lekil kuxlejal (bem viver) em uma luta constante para engrandecer o ch’ulel (espírito). Engrandecer o ch’ulel é aprender da vida, ter respeito ao que existe, é se encontrar, é algo que vai se desenvolvendo continuamente na relação com o mundo. Todos os seres que existem no mundo (mulheres, homens, animais, plantas) têm ch'ulel em diferentes níveis de intensidade.

Há uma relação intrínseca do ch’ulel com o corpo. Uma parte do ch’ulel está localizada no corpo. Quando nosso ch’ulel está bem, o corpo fica menos doente, nossas ações são mais enérgicas. Talvez um dia quando o ch’ulel ficar muito forte não precisaremos mais de hospital e remédio, diz um dos promotores. Estar com o ch’ulel forte nos permite decidir como queremos nos alimentar, como queremos viver. Quando o ch’ulel nosso e dos seres ao nosso redor está enfraquecido, nosso corpo também está.

 

Considerações finais

O movimento zapatista nos lembra da importância da organização comunitária, para um caminhar constante para o bem viver. Os indígenas tzotzil denunciam que uma das causas do adoecimento do seu povo é a violência que sofrem dos paramilitares e que para terem saúde terão que se organizar coletivamente contra isso. A terra não é um mero recurso, mas um lugar a qual o povo pertence, possibilitando o trabalho, o contato com os deuses, a relação de respeito recíproco com os diversos seres viventes, é fundamental para o bem viver, para a promoção da saúde nos povos. Sem o vínculo com a terra, os indígenas se enfraquecem e sofrem com diferentes doenças. As questões sociais e cosmológicas não estão, então, desvinculadas da concepção de saúde presente.

Outra questão interessante é como lidam com a alteridade, com os saberes indígenas. Para fortalecer o protagonismo da comunidade, buscam a recuperação dos saberes indígenas a partir do diálogo com os mais velhos. Identificam nesse movimento não apenas uma maneira “tolerante” de lidar com as diferenças culturais, mas percebem os efeitos diretos que essa valorização pode ter sobre a saúde das pessoas.  Diante da violência que diversos indígenas relatam terem sofridos nos hospitais, estabelecer uma relação de confiança e que parte da cosmopolítica indígena na atenção à saúde, sem negar o diálogo com outros saberes médicos, parece ser um passo importante para melhoras as condições de vida desses povos.

Valer ressaltar, por último, que não se trata de, com essas reflexões, buscar “importar” essa experiência para a realidade muito distinta da saúde no Brasil, onde, cada vez mais se coloca urgente, a luta para que a saúde seja direito de todos e dever do Estado através do Sistema Único de Saúde (SUS). Os próprios zapatistas não buscam ser “modelo”, mas sim fazer um “chamado” para a luta dos povos nas suas diferentes geografias. O que queremos apontar é como a organização comunitária (e seus diferentes mecanismos de construção) vinculados à uma lógica baseada na alteridade podem ser um caminho potente a seguir.