Associação da Rede Unida, 15º Congresso Internacional da Rede Unida

Anais do 13º Congresso Internacional da Rede Unida

v. 4, Suplemento 1 (2018). ISSN 2446-4813: Saúde em Redes
Suplemento, Anais do 13ª Congresso Internacional da Rede UNIDA
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Saúde Coletiva e Interseccionalidade: uma análise do podcast Transverso
Victoria Figueiredo Ribeiro, Paula Rickes Viegas, Raquel Ribeiro Trassante, Lenize Maria Soares Doval, Jéssica Rolim Duarte

Última alteração: 2021-12-14

Resumo


Considerando os desafios de acesso à saúde de diferentes grupos sociais -  potencializados por marcadores sociais como gênero, sexualidade, raça e classe -, a Saúde Coletiva (SC) se apresenta como um campo de saberes e práticas que leva em conta os determinantes sociais para oferecer políticas públicas de planejamento, promoção e avaliação de saúde. Tais marcadores sociais podem ser compreendidos a partir do conceito de interseccionalidade, que propõe pensar nos eixos de discriminação que a intersecção deles representa. A partir desta problemática, este trabalho tem como objetivo propor uma discussão sobre interseccionalidade na SC a partir da primeira temporada do Podcast Transverso.

Necessitando reformular o conceito e as práticas que envolviam a saúde pública e a urgência de uma recomposição das práticas sanitárias, a SC emerge com a intenção de corresponder às reformas econômicas, políticas e administrativas, bem como as propostas setoriais no campo da saúde. A construção desse movimento tem possibilitado um diálogo crítico e a identificação de contradições e acordos com a saúde pública institucionalizada, seja na esfera técnico-científica ou no campo das práticas, visando estabelecer novas propostas de ação sobre a questão da saúde no âmbito coletivo.

Nesse sentido, a SC é um campo de natureza interdisciplinar e, dessa maneira, visa amparar o setor de políticas públicas da saúde e a área de conhecimento das ciências da saúde. O campo também amplia a compreensão do que é a saúde, a doença e o cuidado por meio de saberes e práticas de vários campos do conhecimento humano e construindo estratégias de ação que não se limitam ao combate de doenças, mas que buscam formas de evitá-las e conduzir meios para a produção de saúde.

A interseccionalidade pode ser uma ferramenta importante para pensar nas políticas de saúde para a população LGBTQIA+ ao buscar compreender como se formam eixos de discrimação a partir dos diferentes marcadores sociais.  Kimberle Crenshaw cunhou este termo para compreender a articulação dessas identidades como forma de visibilizar a sobreposição de categorias de discriminação. Por isso, a interseccionalidade será tratada como uma sensibilidade analítica, como nos propõe Carla Akotirene, funcionando como lentes para entender o acesso à saúde de grupos minorizados.

O Podcast Transverso é desenvolvido na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e tem como propósito abordar tópicos relacionados à população LGBTQIA+ ao evidenciar perspectivas, lutas e conquistas a partir de reflexões críticas que busquem promover a equidade. A primeira temporada conta com 9 episódios que tratam de temas como: violência contra pessoas Trans e Travestis; projetos de ensino, pesquisa e extensão sobre as diversidades humanas; políticas locais de saúde; vivências no ambiente universitário; interseccionalidade e passabilidade; diversidade e democracia; e a Política Nacional de Saúde Integral LGBT.

Dionne Freitas, terapeuta ocupacional e ativista intersexo, explica em um episódio que sexo, identidade de gênero e orientação sexual são conceitos que complementam-se, mas que são diferentes para se pensar e analisar enquanto política pública. Considerando o sexo como fênomeno puramente biológico (cromossômico, anatômico), na identidade de gênero envolvem-se fatores psíquicos e sociais, como a auto percepção, a personalidade e a identidade. Dessa forma, atravessando por fatores biológicos, sociais e psicológicos, a identidade de gênero é multifacetária. Pensando em sexualidade, os fatores afetivos-sexuais podem estarem relacionados ao sexo biológico ou funcionarem independentemente, dependendo da atração do indivíduo. Todavia, existem também as pessoas assexuais, em que não há atração de cunho sexual, e pansexuais, em que a atração não limita-se aos genitais. Mais especificamente, fatores de cisgeneridade, transexualidade e pessoas intersexo são independentes.

A partir disso, emerge-se a necessidade de pensar-se em novas reconfigurações de práticas que contribuam para a visibilidade interseccional e, posto isto, Crenshaw propõe desenvolver uma maior proximidade entre os possíveis eixos de discriminação, haja vista que a interseccionalidade sugere que nem sempre lidamos com grupos distintos de pessoas, mas com grupos sobrepostos. Relacionados aos índices de violência, raça, cor, classe e origem geográfica são fatores determinantes na inclusão social e, com isso, pessoas que não se adequam a norma binária sofrem ainda mais com a exclusão das instituições. À vista disso, Carolina Parisotto, mulher trans advogada, transfeminista e facilitadora de direitos LGBTQIA+, explana, sobre como, muitas vezes, há um recorte dentro do próprio movimento trans, buscando uma validação da identidade que seja coerente com o estereótipo de feminilidade, buscando maior passabilidade para transitar socialmente.

Logo, podemos dizer que o discurso da nossa constituição existencial é primeiramente marcado pelo gênero, considerando que o primeiro contato marcado pela classificação de gênero dá-se por via médica. A partir disso, inicia-se o processo da generificação dos objetos (como, por exemplo, o enxoval) e depois do próprio sujeito. O gênero perpassa pelo processo de conformação de performance, de criação do sujeito no processo de gênero, havendo múltiplas possibilidades de se existir, sendo o discurso e a expressão não somente verbais, mas simbólicos. Obviamente os estabelecimentos de moralidade influenciam na conformação do que é “ser mulher” e “ser homem”, sendo a constituição do gênero meramente subjetiva. Fran Demétrio – primeira professora trans da UFRB, com formação interdisciplinar em saúde e direitos humanos epistêmicos, que infelizmente faleceu em julho de 2021 – pondera, a partir da vivência trans e olhar interseccional, que existem múltiplas transgeneridades.

Discutindo a Política Nacional de Saúde Integral LGBT, o professor Daniel Canavese, sanitarista e professor do curso de Saúde Coletiva da UFRGS,  destaca, no âmbito do Sistema Único de Saúde, as conquistas das políticas de Direitos Humanos e de saúde integral da população LGBT, negra e indígena, a partir de uma atuação intensa dos movimentos sociais articulados com as esferas estaduais, na perspectiva de equidade e universalidade nos sistemas de saúde, considerando as situações de injustiças sociais que necessitam de reparo. No panorama do profissional da saúde, além da tolerância e da diversidade, é preciso considerar a interseccionalidade e os  marcadores de raça e classe na formação de espaços universitários, nas unidades de saúde e na gestão, distinguindo identidade de gênero e orientação sexual daquele operado pela normatividade e cisnormatividade, buscando potencializar o atendimento a pessoas que não sejam heterossexuais cisgêneras.

Com essa discussão, buscamos questionar as reconfigurações de práticas que contribuem para a visibilidade interseccional e o acesso universal, integral e de qualidade dessa população no Sistema Único de Saúde (SUS). Os podcasts analisados trazem exemplos diversos sobre o acesso à saúde por grupos que vivenciam continuamente desigualdades e lutas em todas áreas da vida. A partir da Saúde Coletiva, então, é possível pensar um sistema que acolha essa população a partir de um conjunto de atividades eticamente comprometido com as necessidades sociais de saúde.